Por Luiz Eduardo Soares.*
A morte de um jovem negro e pobre, numa periferia brasileira: mais um traço no catálogo da violência policial. Outra vida sepultada sob as patas do Estado. Já não importam palavras e números, curvas e tabelas. Os dados quantificam a tragédia e a diluem. Neutralizam a brutalidade dos processos reais. Convertem a experiência radicalmente singular em mais um caso particular pelo qual o universal se manifesta, encapsulado no conceito. Os conceitos servem ao esclarecimento por meio de categorias equivalentes a outras, permutáveis, moedas de troca cognitivas. O conhecimento é indispensável, mas não abole a dor nem conjura os mistérios da alma humana. A morte de uma pessoa, como sua vida, não é permutável por outra, e nisso reside sua dignidade, fonte dos direitos humanos. O sofrimento é desvão inexpugnável, abismo da linguagem que devora a comunicabilidade. Treva sem fundo, tensionamento refratário à redenção dialética, solidão irremediável. Sobretudo ante situações limite, lutar com palavras é uma luta vã, no entanto lutamos, mal nasce a manhã – dizia Drummond. Por isso este artigo, este grito, de novo, este mantra desidratado.
Sem consolo, as famílias fazem o luto ou desabam na melancolia. O real indizível, contudo, não cede, insiste, perturba, subverte, atua: inscreve o mal-estar na superfície dos dias das classes populares, sob a forma noturna do trauma. O medo, a indignação, a impotência, combinados, assombram a legião dos atingidos pela perda de filhos, pais, irmãos, netos e companheiros. A alquimia anímica transforma esse coquetel venenoso de emoções e percepções em ressentimento, o qual, projetado sobre o mundo público, arruína qualquer expectativa de legitimidade política. O resultado que se colhe é a difusão surda de um ceticismo corrosivo, generalizado e paralisante. A expressão que resta tende a restringir-se à reatividade, uma espécie de desejo disperso de vingança desprovida de alvo e cálculo. A revolta fecha-se sobre si, abotoada pela impotência numa camisa de força, degradando-se em depressão auto-destrutiva ou investindo sua reserva de energia em flechas inócuas do ódio despolitizado. Esse estado d’alma prepara a vítima para a coreografia da negação, para a dramaturgia repetitiva do apedrejamento de ônibus e vitrines, espelhando a violência policial repudiada. Não a prepara para o investimento em mudanças reais, via tessitura de laços de solidariedade e a celebração de compromisso social politicamente orientado. Como extrair do sofrimento extremo, que despotencializa e desnorteia, propostas objetivas de transformação do modelo policial? Impossível, e até aviltante para quem chora perdas irreparáveis. Todavia, nada impede que propostas viáveis e negociadas entre movimentos populares venham a sensibilizar as comunidades que compartilham a dor e a conquistar a adesão dos que, no cotidiano, testemunham a barbárie promovida pelo braço armado do Estado. Converter a perda em ação comum repara o trauma e restaura a potência, dissolvendo o ressentimento em desejo de vida e vontade de mudança. A solução para o trauma não é a vingança, nem o mimetismo do violador, mas o reestabelecimento da confiança no laço social, o engajamento nas coisas da cidade, a corresponsabilização pela esfera pública. Em outras palavras, a política com P maiúsculo. E disso constitui exemplo importante o movimento, em São Paulo, das mães cujos filhos foram assassinados pela polícia, assim como a formação de comissão da verdade para identificar os crimes perpetrados pelo Estado depois do fim da ditadura de 1964. É de se lamentar que seja ainda episódico o envolvimento da maior parte dos movimentos e das entidades politizadas com a pauta do sofrimento, causado pela insegurança pública – não só por ações policiais, também por dinâmicas criminais específicas –, e que seja tão tímido e rarefeito o interesse pela questão policial. Este tópico será retomado em detalhes. Antes, impõe-se percorrer algumas etapas. Entre a dor e o silêncio, estende-se a história de um debate.
Nesse quadro sombrio, marcham nossas polícias militares, e também as civis, reproduzindo inercialmente suas velhas práticas, em geral ineficientes (já passa de 56 mil o número de homicídios dolosos por ano, no país, dos quais apenas 8% são investigados), além de muitas vezes brutais, sem darem sinais de crise terminal. Pelo menos, sinais ostensivos e públicos, porque os internos se acumulam e agravam. As maiorias, compostas por praças e não delegados, nas polícias militares e civis, respectivamente, têm sofrido todo tipo de violação a seus direitos, como trabalhadores e cidadãos, e cada vez mais intensamente demonstram insatisfação. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no final de 2014, denunciou a situação em que trabalhavam os policiais das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) como análoga a escravidão. Um coronel PM me confidenciou, como se eu não soubesse: “Não fôssemos militares, quem se submeteria a esse ultraje, a esse nível de exploração? Se as praças se organizassem em sindicato, o governo não ousaria esticar tanto a corda”. Como esperar desses trabalhadores respeito aos marcos constitucionais e aos direitos humanos? Aproveitando-se da ausência de propostas de mudança no sentido democrático capazes de articular alianças amplas na sociedade, as lideranças dos estratos superiores das instituições esforçam-se por impor a disciplina, especialmente a disciplina política, traduzindo a revolta de seus comandados em linguagem exclusivamente corporativa, subtraindo da indignação o ingrediente mais impactante, potencialmente: sua repulsa ao próprio modelo policial (mais de 70% dos policiais e demais profissionais de segurança pública, em todo o país, consideram falido o atual modelo).
Se a sociedade, seus mais diversos segmentos, está descontente, pelas mais variadas razões, por vezes contraditórias, e se não há sustentação majoritária nas próprias instituições policiais, por que o país permanece convivendo com a arquitetura institucional arcaica, legada pela ditadura? Afinal, a dimensão organizacional é chave para mudanças de comportamento, como pretendo demonstrar adiante. Observe-se aqui um ponto relevante: a ditadura não inventou a tortura e as execuções extra-judiciais, ou a ideia de que vivemos uma guerra contra inimigos internos. Tais práticas perversas e as correspondentes concepções, racistas e autoritárias, têm a idade das instituições policiais no Brasil e antes de sua criação já tinham curso – nunca faltaram capatazes e capitães do mato para caçar, supliciar e matar escravos fugitivos ou rebelados. A ditadura militar e civil de 1964 simplesmente reorganizou os aparatos policiais, intensificou sua tradicional violência, autorizando-a e a adestrando, e expandiu o espectro de sua abrangência, que passou a incluir militantes de classe média. Ainda assim, foi esse regime que instituiu o modelo atualmente em vigência.
Considerados esses aspectos de nossa história no campo da segurança pública, proponho a reflexão sobre quatro interrogações estratégicas: (1) Qual a importância das estruturas organizacionais das polícias para a definição dos padrões de comportamento de seus agentes? (2) Qual a relevância da questão policial para a democracia no Brasil, quando se a compreende como um processo potencialmente progressivo de inclusão popular participativa? (3) Qual a responsabilidade dos atores sociais mais comprometidos com a defesa dos direitos humanos e dos interesses das classes subalternas na conservação da arquitetura das instituições da segurança pública no Brasil, em que se inscreve o modelo policial? (4) Mudanças restritas às polícias poderiam fazer diferença?
1. A importância das estruturas organizacionais das polícias para a definição dos padrões de comportamento de seus agentes
O formato de uma organização é sempre um fator significativo na instauração de padrões comportamentais de seus membros, em maior ou menor grau, conforme o caso, especialmente quando se trata de instituições em que discricionaridade e arbítrio distinguem-se por critérios complexos e dinâmicos, e limites instáveis. No Brasil, a correlação dá-se em grau elevado. Para explicar, tomo o exemplo das PMs, certamente o mais dramático, em razão da natureza de suas funções. Segundo o artigo 144 da Constituição, cabe-lhes o policiamento ostensivo, uniformizado, também chamado preventivo. Dada a divisão do trabalho ditada pelo mesmo artigo, que atribui a investigação com exclusividade às polícias civis, resta aos policiais militares, quando se lhes cobra produtividade, fazer o quê? Prender e apreender drogas e armas. Prender que tipo de transgressor? Atuar contra quais delitos? Se o dever é produzir, se produzir é sinônimo de prender e se não é permitido investigar, o que sobra? Prender em flagrante. Quais são os crimes passíveis desta modalidade de prisão? Aqueles que podem ser identificados, empiricamente, pelos sentidos, a visão e a audição, e que ocorrem em espaços públicos. Não é o caso de lavagem de dinheiro e da maior parte das transgressões perpetradas por criminosos de colarinho branco. O varejo que supre a cota de prisões da PM é composto por personagens que agem na rua, cuja prática também segue a lógica do varejo: batedores de carteira, pequenos vendedores de drogas ilícitas, assaltantes de pontos de comércio, ladrões de automóveis etc. Quais são, em geral, os atores sociais que cometem esses delitos? Com frequência, jovens de baixa escolaridade, pobres, moradores das periferias e favelas, cujas dificuldades cotidianas estimulam a procura de alternativas de sobrevivência econômica. O pulo do gato, que torna tão efetiva a ação policial militar – quando avaliada não pelo resultado que deveria importar (a redução da violência) mas por índices de encarceramento –, dá-se quando o imperativo de prender apenas em flagrante encontra um instrumento legal para fazê-lo com celeridade e em grande escala: a política criminal relativa a drogas e a legislação proibicionista dela derivada. Forma-se o mecanismo cujo funcionamento ágil tem superlotado as penitenciárias de jovens que não portavam armas, não eram membros de organizações criminosas, não agiam com violência. O nome desse processo é criminalização da pobreza, verdadeira consagração do racismo institucionalizado. Se o flagrante como expediente exclusivo de ação policial no campo da persecução criminal submete a aplicação da lei a um crivo seletivo muito peculiar, o recurso à lei de drogas submete o princípio constitucional elementar, a equidade, a refrações de classe e cor. E assim o acesso à Justiça revela-se uma das mais impiedosas e dilacerantes desigualdades da sociedade brasileira. Registre-se que o Estado não cumpre a Lei de Execuções Penais, o que implica a imposição criminosa de um excedente de pena a cada sentença aplicada.
Podem-se formular belas teorias sobre o modo de produção capitalista e o cárcere, a modernidade e o panóptico, o neoliberalismo e as políticas criminais. Tendo a ser cético quanto a conexões macro-estruturais de tipo funcional para pensar a sociedade, mas não há aqui espaço para enfrentar o debate. De meu ponto de vista, bastam poucos fatores para compreender por que temos a quarta população prisional do mundo, aquela que mais cresce e cuja composição demográfica não deixa margem a dúvidas quanto a seu caráter de classe e cor – registre-se que apenas 12% dos cerca de 580 mil presos cumprem pena por homicídio, 40% estão em prisão provisória e 65% são negros. Entre esses fatores, destaco: o racismo da sociedade brasileira (que serve de molde para o conjunto das desigualdades sociais – e aqui inverto a leitura tradicional, em cujos termos a desigualdade de classe é que moldaria o racismo), a lei de drogas, o modelo policial e a cultura da vingança e da guerra, que atravessa distintas classes e se enraiza nas corporações policiais, não só militares. Essa cultura autoriza a violência policial e não é exclusividade das elites, nem mesmo das camadas médias.
Há outros elementos relativos ao formato organizacional, no caso da polícia militar, cujas implicações também são perversas. Vamos por partes, examinando o ponto de partida.
Em nosso regime legal, ditado pelo artigo 144 da Constituição Federal, definir a polícia como instituição militar significa obrigá-la a organizar-se à semelhança do exército, do qual ela é considerada força reserva. Sabe-se que o melhor formato organizacional é aquele que melhor serve às finalidades da instituição. Não há um formato ideal em abstrato. Portanto, só seria racional reproduzir na polícia o formato do exército se as finalidades de ambas as instituições fossem as mesmas. Não é o caso. O exército destina-se a defender o território e a soberania nacionais. Para cumprir esse papel, precisa organizar-se para executar o “pronto emprego”, isto é, mobilizar grandes contingentes humanos com rapidez e precisão, o que requer centralização decisória, hierarquia rígida e estrutura fortemente verticalizada. A função da PM é garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações, recorrendo ao uso comedido e proporcional da força quando indispensável. Segurança é um bem público que deve ser oferecido universalmente e com equidade. Os confrontos armados são as únicas situações em que haveria alguma semelhança com o exército, ainda que mesmo aí as diferenças sejam significativas. De todo modo, equivalem a menos de 1% das atividades que envolvem as PMs. Não faria sentido impor a toda a instituição um modelo organizacional adequado a atender 1% de suas atribuições. A imensa maioria dos desafios enfrentados pela polícia ostensiva exige estratégias inviáveis na estrutura militar. Elas são descritas pelo seguinte modelo: o policial na rua não se restringe a cumprir ordens, fazendo ronda de vigilância ou patrulhamento determinado pelo Estado-maior da corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele atua como gestor local da segurança pública, o que significa, graças a uma educação interdisciplinar e qualificada: (1) Pensar, analisar, dialogar e decidir – não apenas cumprir ordens. Diagnosticar os problemas e identificar as prioridades, ouvindo a comunidade mas sem reproduzir seus preconceitos; (2) Planejar ações, mobilizando iniciativas multissetoriais do poder público, na perspectiva de prevenir e contando com a participação social. Para que o policial na ponta atue como gestor, tem de ser valorizado, dotado de meios para convocar apoio e de autoridade para tomar decisões estratégicas. Supervisão e interconexão são imprescindíveis, mas autonomia é necessária para que a atuação seja criativa e adaptada a circunstâncias sempre específicas e variáveis. Ele dialoga, evita a judicialização precipitada, intermedia conflitos, orienta-se pela prevenção e busca acima de tudo garantir direitos dos cidadãos. Tudo isso só é viável em uma organização horizontal, descentralizada e flexível, o inverso da estrutura militar. E o controle interno? Engana-se quem defende hierarquia rígida e regimentos disciplinares draconianos. Se funcionassem, não haveria tanta corrupção e brutalidade nas PMs. Eficazes são o sentido de responsabilidade, a qualidade da formação e o orgulho de sentir-se valorizado pela comunidade com a qual interage. Além de tudo, corporações militares tendem a ensejar culturas afetas à violência, cujo eixo é a ideia de que segurança implica guerra contra “o inimigo”. Não raro essa figura é projetada sobre o jovem pobre e negro. Uma polícia ostensiva preventiva para uma democracia que mereça este nome tem de cultuar a ideia de serviço público com vocação igualitária, radicalmente avesso ao racismo e à criminalização da pobreza.
2. A questão policial e a democracia no Brasil
Não é preciso ir muito além para explicar por que, a meu ver, o modo como são tratadas a questão policial, a Justiça criminal e a política de drogas é decisivo para a democracia. Hoje, não há equidade, a Constituição não é respeitada, filtros seletivos reproduzem desigualdades na operacionalização das atividades policiais, e da Justiça criminal. As execuções extra-judiciais, por um lado, e o inferno penitenciário, por outro, são polos extremos de um continuumrefratário aos direitos humanos e aos princípios constitucionais fundamentais. O que costumo denominar genocídio de jovens negros nas favelas e periferias, conduzido pelas forças policiais, não só militares, é a face mais tangível de um processo perverso que se estende até o sistema penitenciário, onde a destruição de seres humanos tem ensejado as mais violentas reações, alimentando o ciclo vicioso conhecido e a temida espiral de dor e medo. Os agentes do Estado que cometem crimes são também vítimas, dentro e fora de suas instituições. Personagens deste mesmo drama macabro.
3. Qual a responsabilidade dos atores sociais mais comprometidos com a defesa dos direitos humanos e dos interesses das classes subalternas na conservação da arquitetura das instituições da segurança pública no Brasil, em que se inscreve o modelo policial?
Apesar de muitas mudanças extremamente importantes terem ocorrido no Brasil, desde a promulgação da mais democrática Constituição de nossa história, em 1988, a arquitetura das instituições da segurança pública, na qual se inscreve o modelo policial, não foi alcançada e transformada pelo processo de transição, ainda que suas práticas tenham sofrido inflexões, adaptando-se superficial e insuficientemente às alterações legais. Além da preservação do formato organizacional oriundo da ditadura, que herdamos recheado com a cultura da guerra ao inimigo interno, a própria natureza da transição brasileira contribuiu para bloquear mudanças. Não houve o momento de verdade, que deveria preceder qualquer reconciliação – se pensarmos nos termos correspondentes ao modelo aplicado por Nelson Mandela, na África do Sul. A sociedade não olhou o horror nos olhos, não chamou os crimes da ditadura pelo nome, acomodou-se na pusilanimidade dos eufemismos. O impacto negativo sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável. Os novos marcos constitucionais foram e são interpretados, nas polícias (militares e civis), pelo viés da tradição autoritária, gerando, na melhor das hipóteses, um híbrido psico-cultural que faz com que muitos profissionais tendam a oscilar entre dois eixos gravitacionais, do ponto de vista axiológico: de um lado, o repertório bélico que valoriza o heroismo, a lealdade, a coragem física, o confronto; de outro, o código do serviço público que valoriza os direitos e o respeito à cidadania, assim como a fidelidade à Constituição e a competência na promoção de resultados compatíveis com a democracia.
Em poucas palavras, o relativo imobilismo de toda esta área contrasta com o dinamismo da sociedade brasileira. Destaca-se, portanto, como um problema intelectual e um desafio prático. Há muitas razões para a estagnação conservadora, entre as quais os modos pelos quais os atores sociais mais comprometidos com a defesa dos direitos humanos e dos interesses das classes subalternas têm agido, ou se omitido. Vou me concentrar neste ponto, não porque seja o principal fator, mas porque é aquele sobre o qual os eventuais leitores do presente livro talvez tenham mais facilidade de exercer influência. Com o risco de homogeneizar a multiplicidade de perspectivas compreendida por minha delimitação, ousaria afirmar que esses atores, supostamente os mais interessados nas mudanças, têm, com honrosas exceções, ignorado a centralidade da questão para as classes populares e minimizado o investimento de energia política nessa problemática. Por isso, o mais frequente, diante da violência policial, é que a comunidade atingida manifeste sua revolta sob a forma das explosões às quais me referi na abertura destas reflexões, sem contar com a participação ativa de setores politicamente organizados. Esses agentes políticos coletivos poderiam ajudar a canalizar a indignação para objetivos realistas que conduzissem, especificamente, à transformação estrutural da segurança pública.
Entre os motivos desta indisposição para assumir uma agenda de mudanças para a segurança – que começou a ser revista nas jornadas de junho de 2013 –, incluo algumas concepções teóricas e ideológicas:
(a) É preciso uma agenda de transformações das estruturas sociais, não da segurança pública, uma vez que esta última seria apenas uma consequência, um reflexo ou “epifenômeno” das relações sociais de dominação de classe. Inspirando-se na obra de Lenin, “O Estado e a revolução”, quem pensa nesses termos acredita que o Estado funcione como engrenagem uniforme a serviço da opressão capitalista. Por isso, não haveria nada a fazer, enquanto a revolução não substituísse o capitalismo por uma ditadura de classe alternativa. Qualquer esforço no sentido de promover reformas estaria fadado ao fracasso ou, pior, apenas difundiria ilusões, retardando a tomada de consciência quanto à inelutabilidade da revolução. E ainda por cima talvez acabasse cúmplice da dominação social, aperfeiçoando seus instrumentos repressivos e ampliando a faixa de sua aceitabilidade. Portanto, diante de cada crise da segurança que afete os mais pobres, a postura de seus pretensos porta-vozes revolucionários tende a ser: o que está em curso não é mau policiamento, mas bom policiamento para o sistema, porque tudo o que acontece, inclusive no campo da segurança, dá-se como realização de interesses e vontades políticas de classe, ou em seu benefício. O Estado não é espaço de contradições e disputas, tampouco existem efeitos perversos ou efeitos de agregação das ações sociais, assim como as linhas de ação dos setores dominantes nunca erram quanto a seus próprios interesses, e as iniciativas cuja fonte seja o Estado funcionam, isto é, encaixam-se nesse organismo funcional do poder, nessa mônada opaca e impermeável.
(b) Ainda que a sociedade e o Estado sejam porosos, sujeitos de e a contradições as mais diversas, atravessados por mediações complexas, e ainda que os atores nunca sejam oniscientes e que o emaranhado das ações esteja longe de espelhar desejos e planos, interesses e projetos, econômicos e políticos, ainda assim nada do que ocorre na esfera da segurança pública é indiferente à autorização da sociedade. Por conseguinte, antes de qualquer providência reformista voltada especificamente para organizações e comportamentos dos agentes da segurança e da justiça criminal, seria necessário mudar as visões hegemônicas sobre guerra, inimigos internos e a descartabilidade dos vulneráveis. Se as polícias agem de modo francamente racista e adotam nítido viés de classe, se territórios são estigmatizados, os problemas não estão nessas instituições e em seus profissionais, mas na sociedade, em sua história. Sem que a cultura anti-democrática seja transformada, seria equivocado e fantasioso tentar mudar as corporações policiais, suas táticas, métodos, abordagens e comportamentos.
(c) Independentemente das convicções sobre economia, política e sociedade, o que importa é denunciar os abusos policiais, não oferecer alternativas. Todo poder deve ser confrontado e nada mais representativo do caráter odioso deste pan-poder estatal do que a polícia, quaisquer que sejam suas formas e seus comportamentos. Nem “democracia burguesa”, nem “ditadura do proletariado”: regimes políticos e modos de produção são indiferentes. Reduzem-se a variações em torno do mesmo mote e destino: o poder e a disciplina, dos saberes aos corpos. Assim como democracias não se distinguem de ditaduras, polícia é sempre polícia: um mal a exorcizar.
(d) Vale a pena lutar por transformações tópicas na esfera da segurança pública e de suas instituições, porque as ações destas últimas afetam os grupos sociais mais pobres e estigmatizados, incidem sobre as condições de vida nos territórios mais vulneráveis e influenciam a participação cidadã, obstruindo-a ou a facilitando. Entretanto, segurança não deve ser tomada como um bem universal, porque forças progressitas não deveriam envolver-se na proteção da propriedade, numa sociedade tão desigual quanto a nossa, nem deveria tomar como um problema o crime perpetrado por atores sociais vítimas da sociedade de classes. Enfim, controlar a violência policial constitui um objetivo importante e alcançável, porque formatos distintos e culturas corporativas diferentes produzem, sim, efeitos distintos e até opostos. Todavia, propor políticas de segurança para reduzir os mais diversos tipos de crime não seria tarefa de um ativista de esquerda. Por isso, corrupção seria um tema perigoso, suscitando tantas ambiguidades: bom para acusar adversários políticos, quando se está na oposição; ruim para engendrar um discurso republicano de natureza universalista, uma vez que, segundo este quarto ponto de vista (e, provavelmente, também os anteriores), a corrupção seria traço intrínseco ao sistema.
Claro que os quatro pontos de vista referidos são mais elaborados do que sugere este resumo didático. E é evidente que podem ser deixados em segundo plano, quando, por razões táticas ou por senso de oportunidade, mostre-se conveniente juntar-se a segmentos sociais vitimizados pela violência policial e entoar palavras de ordem específicas, inclusive aquelas que eventualmente demandem mudanças na esfera policial, articuladas a perspectivas universalistas. Abraçar por motivos exclusivamente circunstanciais uma pauta reformista e tópica não garante ao movimento pela mudança nem constância e persistência, nem escolhas consequentes. Ele pode ser abandonado no momento seguinte se a conjuntura variar.
Eis o paradoxo: seria importante a participação de grupos políticos e movimentos sociais, entidades e associações comprometidos com os interesses dos grupos mais vulneráveis e engajados na defesa de seus direitos, tão desrespeitados, inclusive pelas polícias. Mais ainda: seria decisivo se, em sua pluralidade, lograssem negociar um consenso mínimo em torno de uma agenda de mudanças no modelo policial e na arquitetura institucional da segurança pública. O salto de qualidade, entretanto, exigiria que se fosse além, que se assumisse uma perspectiva universalista e que se buscasse construir um consenso mínimo com todos os setores sociais sensíveis aos princípios constitucionais mais elementares, os quais são coerentes com os direitos humanos. Assim, seria necessário adotar uma postura efetivamente tolerante e dialógica, aberta, ativamente, à construção de uma coalizão reformista ampla, reconhecendo que ou haverá segurança para todos, ou ninguém estará seguro, e que segurança deveria ser entendida como garantia de direitos. Sabemos quais são as garantias mais expostas à predação de todo tipo: aquelas dos grupos sociais mais pobres e estigamtizados.
É evidente que garantias constitucionais remetem aos direitos fundamentais: à educação, à saúde, à habitação etc., em igualdade de condições para todas as crianças. Por isso, aplicar a Constituição implicaria uma transformação extraordinariamente profunda. Ocorre que é preciso estar vivo para lutar por equidade na garantia desses direitos. E é preciso poder andar tranquilamente na favela em que se nasceu: para organizar-se, promover movimentos, avançar. E para evitar que as lutas comunitárias se restrinjam às expressões reativas de dor e indignação.
4. Mudanças restritas às polícias poderiam fazer diferença?
A resposta é afirmativa. Espero ter demonstrado que formatos institucionais apresentam afinidades eletivas com padrões de comportamento. Se logrei fazê-lo, deduz-se agora que a mudança de formatos pode impactar as ações. Essa conclusão vale mesmo se reconhecermos que a autorização da sociedade para a brutalidade policial representa uma variável importante e que revogá-la deve ser meta permanente dos esforços verdadeiramente democráticos.
A conclusão também vale para quem acredita que a violência estatal corresponde a interesses econômicos e políticos poderosos. Afinal, se for assim, reduzi-la equivaleria a aplacar a voracidade desses atores e impor-lhes uma derrota, mesmo que parcial e localizada. Quanto aos que não percebem a gravidade do sofrimento popular de que se está tratando, ou supõem que mais ódio contra o Estado resulte em mais vigor no combate político, sugiro retorno aos parágrafos de abertura deste texto. A dor é terrível e sobre ela, diretamente, não se constrói.
Em poucas palavras, sustento que o país, mesmo tragicamente desigual como é, poderia matar menos jovens pobres e negros. Afirmo que é possível sustar o genocídio enquanto envidamos esforços para alterar o quadro socioeconômico, o qual, evidentemente, deve ser mudado. Não é preciso, nem moralmente aceitável, esperar por transformações nas estruturas sociais para então enfrentar o genocídio. Não se trata de lutas mutuamente excludentes. Devem ser concomitantes, pois uma fortalece a outra – o que nem sempre é o caso, quando estão em jogo outras metas. Nem toda luta política tem, necessariamente, de transcorrer ao mesmo tempo e no mesmo impulso. Pelo contrário, são raras as circunstâncias em que uma conjunção desse tipo é viável, eficaz e, portanto, conveniente. Um exemplo é a legalização das drogas, bandeira ainda amplamente impopular. Não faria sentido travar numa só batalha política a luta pela mudança das estruturas da segurança e pela revogação do proibicionismo. Condenar-se-ia a primeira a submeter-se à correlação de forças, muito mais negativa, em que se trava a segunda. Conquistas em uma esfera empoderam atores, ajudam a expandir experiências positivas derivadas dos avanços tópicos, provocam alterações em valores e crenças, e atuam, favoravelmente, sobre arenas nas quais se disputam outras propostas. Mas, insisto, nem sempre movimentos justos, embora indispensáveis, podem se sobrepor sem graves prejuízos.
O problema, em se considerando os quatro pontos de vista assinalados, está em admitir que violência policial não é o único desafio a enfrentar, ainda que seja o maior. E que, tanto por motivos políticos, quanto por razões substantivas, não se terá sucesso na promoção das mudanças necessárias para extingui-la se o tema da universalidade da segurança pública não for assimilado pelos que se empenham nas reformas.
Por motivos políticos, porque nenhuma alteração constitucional – indispensável para uma reforma na arquitetura institucional e no modelo de polícia – será aprovada sem que as bandeiras em pauta saiam do gueto em que nos encontramos, os militantes dos direitos humanos e seus aliados, e atraiam amplos setores da sociedade, cuja maioria, inclusive entre os mais vulneráveis, preocupa-se fortemente com a violência perpetrada por atores sociais, não somente, nem principalmente, com aquela cometida por policiais.
Por razões substantivas, porque reformas nas instituições e nas culturas corporativas ter-se-iam de construir, tecnicamente, e justificar com base na admissão da necessidade de que se criem condições para que se respeite, na prática, o princípio da equidade, viabilizando tratamento igualitário na prestação de serviço à cidadania, proporcionando respeito a todos e aos direitos consagrados na Constituição. Respeito às comunidades e efetividade no cumprimento da missão constitucional: eis-nos diante de bandeira universalista.
Em se admitindo, portanto, que mudanças específicas na área da segurança podem fazer a diferença, ainda que devam caminhar juntas com várias outras mudanças, a começar pela legalização das drogas (cujo tempo político seguirá condições próprias), quais delas seriam viáveis (passíveis de conquistar amplo apoio social), além de necessárias? Em primeiro lugar, desmilitarizar as PMs. Várias vezes, ao longo do texto, citei a violência policial, incluindo a polícia civil no alvo da crítica, além do apoio cúmplice de boa parte da sociedade. Isso significa que o problema da segurança não se limita às polícias, tampouco às PMs, o que não quer dizer – espero que já esteja claro, mas vale reiterar – que transformações tópicas não sejam indispensáveis. Entre elas, a desmilitarização – os argumentos a seu favor já foram expostos, acima. Desmilitarizar implica cortar o vínculo das polícias militares com o exército, livrá-las de regimentos disciplinares inconstitucionais e autorizar seus membros a organizar seus sindicatos, os quais se submeteriam a regras específicas, como é o caso no campo da saúde e da polícia civil, por exemplo. O processo de mudança encetado pela desmilitarização ofereceria a oportunidade para a reforma completa do modelo policial, que se daria em torno de dois eixos, ambos apoiados pela maioria dos próprios policiais, civis e militares, ainda que haja fortes resistências nos estratos superiores das corporações, entre oficiais e delegados.
O primeiro eixo seria a revogação da atual divisão do trabalho entre as instituições: uma investiga, a outra age ostensivamente sem investigar. Ambas, então civis, passariam a cumprir o chamado ciclo completo da atividade policial: investigação e prevenção ostensiva. Isso não implica, necessariamente, unificação. Em estados como São Paulo, onde a PM tem mais de 100 mil policiais e a polícia civil, mais de 30 mil, seria impraticável e extremamente perigosa, politicamente, a unificação. Em estados pequenos, esta solução poderia fazer sentido. Admitir uma variedade de modelos, sempre civis, exigiria a flexibilização normativa e a descentralização decisória. As populações dos estados poderiam decidir entre alternativas, desde que respeitados os novos mandamentos constitucionais que resultariam da alteração do artigo 144 da Constituição federal. Entre os novos mandamentos, constariam a explicitação do papel das polícias – prover a garantia de direitos com equidade – e a desmilitarização, assim como o fim do dualismo: investigação, ostensividade.
O segundo eixo seria a instauração da carreira única no interior de cada instituição, antigo pleito da massa policial. Hoje, há duas polícias em cada uma: oficiais e praças, delegados e agentes (detetives, inspetores etc. – o caso dos peritos é de grande importância, mas requeriria mais espaço para ser aqui apresentado). São dois mundos distintos, competindo entre si e, cada vez mais, mutuamente hostis. Diferentes nos salários, no prestígio, nas chances de ascensão, no acesso ao poder, no horizonte de ambições. As regras para ingresso no estrato superior atualmente dificultam ao extremo a ascensão. Por que não oferecer a possibilidade de que a evolução na carreira se realize via concursos internos e avaliação do desempenho ao longo da vida? Carreira única não significa desprezo do mérito, pelo contrário. Significa que a todos os que ingressarem na instituição dar-se-ão oprtunidades iguais, no ponto de partida, para a construção das respectivas trajetórias profissionais.
A natureza do trabalho policial o situa com frequência sobre o fio da navalha. Para poucas outras funções é tão decisivo o controle externo, independente, de uma Ouvidoria dotada de recursos e autoridade, cuja legitimidade seja extraída de e traduzida em mandatos, exercidos com transparência.
Apresentada pelo senador Lindbergh Farias em 2013, a proposta de emenda constitucional número 51 (PEC-51), para cuja formulação contribuí, postula esse conjunto de mudanças. Certamente, reformas profundas nas organizações e induções valorativas relevantes demandariam tempo para transição, e teriam de contar com ampla participação dos profissionais e acompanhamento por parte da sociedade. Nada disso pode se dar em um estalar de dedos do Congresso Nacional, mudando o artigo 144 da Constituição, nem o atual parlamento dá sinais de sensibilizar-se com pautas democráticas e populares. Somente uma ampla mobilização da sociedade seria capaz de pressionar os políticos, em Brasília, e conduzi-los em direção democrática. Estamos distantes desta hipotética realidade. Mas a crescente disposição participativa dos policiais e a evolução de seu debate político, que já superou a agenda exclusivamente corporativista, mantêm viva a esperança.
Desde o processo constituinte, há quase 30 anos, portanto, venho propondo debates sobre segurança pública, polícias e justiça criminal, nas assembleias de que participo. Os companheiros e companheiras me escutam com respeito, e me pedem que aguarde, porque as prioridades são outras: educação, saúde, emprego etc. Afinal, há questões mais importantes. Quando o teto da reunião se aproxima, insisto, mas o tema é postergado para a próxima assembleia, na qual o roteiro se reproduz. Décadas depois, continuo convencido de que os outros temas são mais importantes, mas ainda acho que polícia é questão de vida ou morte para muitos, além de ser decisiva para a democratização efetiva da sociedade brasileira. Continuo convencido de que o tema não pode permanecer no limbo político, sempre adiado, nunca levado a sério, alvo de acusações, vazio de propostas, enquanto assistimos passivamente às reivindicações por penas mais duras adubarem o populismo punitivo. Vamos, enfim, falar sobre isso?
* Artigo escrito originalmente para o livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, Carta Maior, 2015) e publicado em versão ampliada naedição #24 da Revista Semestral Margem Esquerda. O autor agradece a Miriam Guindani pela leitura crítica e as sugestões incorporadas ao texto.
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Luiz Eduardo Soares é escritor, cientista político e antropólogo. Professor da UERJ e ex-secretário nacional de segurança pública, é autor de Meu casaco de general (Objetiva, 2005) e Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo (Nova Fronteira, 2011), além de ser um dos autores do livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, Carta Maior, 2015).
Fonte: Blog da Boitempo
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