1. Introdução
Tema controvertido entre os experts, até o momento não se tem uma posição pacífica sobre a legalidade do ato de policial que atua na segurança externa dos estabelecimentos prisionais atirar no preso que foge, para impedir a fuga. Não se cogita da fuga mediante violência ou grave ameaça contra a pessoa. É o caso do preso que só foge, pacificamente.
O assunto tem levantado polêmica, gerando os mais acalorados debates. Existem fortes argumentos dos dois lados, embora pouco, ou nada, se escreva sobre o tema. É devido a essa escassez de trabalhos jurídicos sobre a matéria e a importância e controvérsia do assunto, que o mesmo se faz alvo do presente artigo.
Por um lado, defende-se o alegado “direito de fugir”, por ser a liberdade uma necessidade instintiva da natureza humana. Fugir, por si só, não configura delito.
De outro vértice, apresenta-se o dever legal do policial que se encontra na guarita da Penitenciária ou da Cadeia Pública, exercendo a função de segurança externa do estabelecimento prisional, de impedir a evasão do condenado. O policial deve usar de todos os meios legais, necessários e adequados para impedir a fuga. Se não houver outros recursos não-letais, pode o policial atirar no preso que foge ou exige o direito que ele deixe o preso fugir para preservar a vida do fugitivo?
É esse conflito de direitos e obrigações o foco do presente estudo.
Passa-se à análise do tema.
2. O “direito de fugir”
Tornou-se corriqueiro afirmar no âmbito social e até mesmo no âmbito jurídico que o indivíduo preso tem o direito de fugir do estabelecimento prisional. Referido direito, o desejo, a busca da liberdade, seria natural do ser humano. O ministro Marco Aurélio, comentando sobre o polêmico julgamento do Habeas Corpus impetrado pelo italiano Salvatore Cacciola, que, após conseguir a liberdade, fugiu do país, afirmou que a liberdade é direito natural do ser humano e a obstrução ao constrangimento nitidamente ilegal, ainda que não esteja inscrita em lei positiva, é imanente dos direitos da cidadania brasileira. Segundo comentou o ministro “Enquanto a culpa não está formada, mediante um título do qual não caiba mais recurso, o acusado tem o direito — que eu aponto como natural — que é o direito de fugir para evitar uma glosa que seria precipitada”, disse o ministro.
A liberdade é sentimento inerente à condição do homem, sendo um direito individual garantido como cláusula pétrea na Constituição da República. Por isso, é pacífico não se incriminarem algumas condutas, que, a princípio, estariam tipificadas na legislação. Não comete crime de resistência a pessoa que se agarra a um poste, no momento da prisão, para não ser conduzida pela polícia, por exemplo.
Tanto que não há pena no Código Penal para a conduta “fugir”, mas sim por “promover” ou “facilitar” a fuga (art. 351, do CP). A fuga do prisioneiro, em si mesma considerada, não é crime e se não está disposto no rol dos delitos, o fato da ausência também não poderá ser interpretado como agravante em nenhuma hipótese.
Para que haja crime na evasão do condenado, é necessário que o recluso empregue violência ou grave ameaça contra a pessoa, como preceitua o art. 352, do Código Penal. Como ensina Guilherme de Souza Nucci: “[...] a fuga do preso somente é punida se houver violência contra a pessoa, visto ser direito natural do ser humano buscar a liberdade, do mesmo modo que se permite ao réu, exercitando a autodefesa, mentir.” (NUCCI, 2007, p. 1111).
Nem mesmo a destruição praticada contra o estabelecimento (grades cortadas, paredes quebradas, buracos abertos no subsolo), no intuito de empreender fuga, configura crime de dano contra a Administração. Nesse sentido, a jurisprudência:
PENAL. RECURSO ESPECIAL. DANO. FUGA DE PRESO.
I - Na linha de precedentes desta Corte, não configura crime de dano se a ação do preso foi realizada exclusivamente para a consecução de fuga. A evasão por parte de preso só está prevista como crime na hipótese de violência contra a pessoa (art. 352, do CP).
II - A evasão, com ou sem danos materiais, ganha relevância, basicamente, em sede de execução da pena. Recurso desprovido.
(STJ. REsp 867.353/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, j. em 22/05/2007).
HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. CRIME DE DANO CONTRA O PATRIMÔNIO PÚBLICO (ART. 163, PAR. ÚNICO, III DO CPB). PRESO QUE EMPREENDE FUGA, DANIFICANDO OU INUTILIZANDO AS GRADES DA CELA ONDE ESTAVA CUSTODIADO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS NOCENDI). PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR. ABSOLVIÇÃO. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DA ORDEM. ORDEM CONCEDIDA, PARA ABSOLVER O PACIENTE DO CRIME DE DANO CONTRA O PATRIMÔNIO PÚBLICO.
1. Conforme entendimento há muito fixado nesta Corte Superior, para a configuração do crime de dano, previsto no art. 163 do CPB, é necessário que a vontade seja voltada para causar prejuízo patrimonial ao dono da coisa (animus nocendi). Dessa forma, o preso que destrói ou inutiliza as grades da cela onde se encontra, com o intuito exclusivo de empreender fuga, não comete crime de dano.
2. Parecer do MPF pela concessão da ordem.
3. Ordem concedida, para absolver o paciente do crime de dano contra o patrimônio público (art. 163, par. único, III do CPB).
(STJ. HC 85.271/MS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, j. em 06/11/2008).
Assim, desde que não pratique violência ou grave ameaça contra a pessoa, não comete crime o preso que foge.
Todavia, o alegado direito à fuga, como será demonstrado, inexiste. O condenado tem deveres a serem observados, dentre eles o de ter comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença que o condenou, sendo-lhe vedada conduta tendente a apoiar movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina (art. 39, I e IV, da Lei 7.210/84).
A disciplina consiste na colaboração com a ordem, na obediência às determinações das autoridades e seus agentes e no desempenho do trabalho. No cumprimento da sentença, o recluso deve respeitar as disposições gerais disciplinares, legais ou regulamentares.
Deste modo, ao iniciar a execução da pena, o condenado ou denunciado (preso provisório) será cientificado das sanções disciplinares, cujas infrações se subdividem em graves, médias e leves. As sanções médias e leves serão regidas por lei local ou regulamento. Por sua vez, as faltas graves estão expressamente reguladas na Lei n.º 7.210/84 (Lei de Execução Penal) e, portanto, devem ser observadas por presunção legal.
A fuga configura falta grave na execução penal (art. 50, II, da Lei 7.210/84), acarretando diversas sanções administrativas e disciplinares em desfavor do condenado, como a perda dos dias remidos, a regressão do regime, o mau comportamento, a perda das regalias. Sobre o tema:
EXECUÇÃO PENAL -COMETIMENTO DE FALTA GRAVE -PERDA DOS DIAS REMIDOS -INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO (ART. 127 DA LEP). - A regra do art. 127 da Lei das Execuções Penais estabelece que o benefício pode ser cassado, em caso de cometimento de falta grave pelo preso. Essa é a hipótese vertente, pois, de acordo com as informações prestadas, o paciente, valendo-se do benefício do regime semi-aberto, empreendeu fuga da penitenciária em que se encontrava, incorrendo em falta grave, motivo pelo qual teve decretada a regressão do regime prisional e a perda dos dias remidos. - Esta Corte, reiteradamente, tem decidido que em casos como o dos autos, não há falar em direito adquirido, sendo perfeitamente possível a perda dos dias remidos. - Ordem denegada. (STJ. HC 12905/SP, Rel.: Ministro JORGE SCARTEZZINI, j. em 12/02/2001).
EMENTA: HABEAS CORPUS. FALTA GRAVE. FUGA. PERDA DOS DIAS REMIDOS. ART. 50, II, E ART. 127 DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS (LEI N° 7.210/84). LEGITIMIDADE. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. 1. A fuga do preso é considerada falta grave, nos termos do art. 50, II, da Lei de Execuções Penais, razão pela qual é legítima a decisão que decreta a perda dos dias remidos com base neste fato. 2. A decisão do Superior Tribunal de Justiça impugnada no presente habeas corpus está em harmonia com os precedentes do Supremo Tribunal Federal, não havendo qualquer ilegalidade a ser sanada. 3. Ordem denegada.
(STF. HC 91587, Rel.: Ministro JOAQUIM BARBOSA, j. em 29/04/2008).
Se o condenado estiver cumprindo pena em regime fechado, a fuga consumada ou tentada por ele praticada o impede de obter a progressão de regime para outro menos rigoroso (semi-aberto). Ademais, a fuga faz com que se interrompa o prazo prescricional e sujeita o infrator às penalidades administrativas consistentes na suspensão ou restrição de direitos, ou isolamento temporário na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo. É relevante declinar que na aplicação das sanções disciplinares levar-se-á em conta a pessoa do faltoso, a natureza e as circunstâncias do fato, bem como as suas conseqüências (LUPO, 2002, p. 33-35).
Em fase de execução da pena, outrossim, se o preso que cumpre pena em regime semi-aberto fugir ou tentar fugir, com a punição pela falta grave perderá automaticamente a possibilidade de obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, para visitar sua família, frequentar curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução de segundo grau ou superior, na comarca do Juízo da Execução ou participar em atividades que concorram para o retorno ao convívio social, caso tenha cumprido o mínimo de um sexto da pena, se o condenado for primário, e um quarto se reincidente. A recuperação do direito à saída temporária dependerá da absolvição no processo penal, do cancelamento da punição disciplinar ou da demonstração do merecimento do condenado.
Além do mais, os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semi-aberto e os presos provisórios, na hipótese da prática da infração em epígrafe, perderão o direito de obter permissão de saída do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão, ou em caso de necessidade de receber tratamento médico.
Cumpre ressaltar, ainda, que nas hipóteses legais em que se admite a autorização para o trabalho externo, isto é, dependendo da aptidão, disciplina e responsabilidade, além do cumprimento mínimo de um sexto da pena, a prática da falta grave em foco acarretará a revogação do benefício mencionado.
Na hipótese de estar a pessoa condenada a pena restritiva de direitos, se for punido pela infração disciplinar em tela sofrerá conversão da medida em pena privativa de liberdade, a exemplo do que acontece no caso das penas de prestação de serviços à comunidade e de limitação de fim de semana. Nesta hipótese, no cálculo da pena privativa de liberdade a executar será deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de 30 (trinta) dias de detenção ou reclusão, consoante a recente modificação legislativa dada pela Lei n.º 9.714, de 25 de novembro de 1998.
Não se pode deixar de atentar, além disso, que se o detento praticar aludida infração administrativa durante o cumprimento da reprimenda, pode deixar de ser beneficiado em eventual indulto que lhe concederia a comutação da pena, vez que em face da sua má conduta prisional deixaria de deter requisito objetivo autorizador da benesse.
Da mesma maneira, se o detento praticar a falta grave disciplinar em questão deixará de ser beneficiado com o livramento condicional, por não ter comportamento satisfatório durante a execução da pena revelando seus antecedentes carcerários e demonstrando que a pena que lhe foi imposta ainda não cumpriu as finalidades supra mencionadas. É relevante ressaltar, ainda, que se o detento contribuir de qualquer maneira para que seu companheiro de cela consiga ou tente fugir, isto é, se ele auxiliar, induzir ou instigar outrem a cometer a aludida infração disciplinar também sofrerá as consequências traçadas.
Em nível processual, ainda que possa haver tempero orientado pela Súmula n. 347 do Superior Tribunal de Justiça, o Código de Processo Penal (art. 595) diz que se a fuga ocorrer após a interposição do recurso de apelação da sentença condenatória, o apelo será considerado deserto, o que inviabiliza o seu julgamento, pois se extingue de forma anômala.
Finalmente, deve-se ressaltar que, em certas situações, além das sanções referidas, concomitantemente pode o preso estar praticando o crime de evasão mediante violência, e pela simples circunstância de ter sido praticado fato previsto como crime doloso, tal conduta constitui falta grave e sujeita o preso ou condenado a sanção disciplinar, sem prejuízo da sanção penal.
Se fugir fosse um direito, o exercício desse direito não poderia prejudicar o seu titular.
Rechaçando o alegado “direito de fugir”, Fernando Pascoal Lupo, após fundamentado arrazoado, arremata:
Portanto, fica evidente que o preso, condenado ou provisório, não tem o direito de fugir, como antes se pensava, pois sua liberdade de locomoção foi restringida temporariamente em virtude da execução da pena, ou da possibilidade de futura sentença condenatória.
E, para dar maior ênfase ao pensamento do legislador, considerou-se que a mera tentativa de falta grave será punida com a sanção correspondente à falta consumada. Dessa forma, se o preso tentar se evadir também receberá a punição, como se consumada fosse a falta grave. [...]
Por essas razões, definitivamente está afastado o entendimento errôneo de que o preso teria o direito de fugir, quando, na realidade, verificamos as diversas sanções decorrentes da fuga consumada ou tentada. (LUPO, 2002, p. 33-35).
Sobre o tema, Júlio Fabbrini Mirabete ensina que não existe o direito de fugir, mas sim o dever do preso de se submeter à pena e até mesmo à prisão preventiva. Nas palavras do doutrinador:
Frente ao pretendido “direito” ou “dever” de fugir, que todo preso teria, conforme certa doutrina, é adequado registrar na lei que estará ele desobedecendo a um dever para com a Administração ao tentar adquirir a liberdade pela fuga ou evasão. A evasão, como infração de duas ordens jurídicas, a penal e a penitenciária, pode comportar consequências em ambos os setores do ordenamento jurídico: no penal, a responsabilidade pelo delito previsto no art. 352 do CP, e no penitenciário, pela ocorrência de falta disciplinar grave (art. 50, da LEP). Embora a evasão somente se constitua em ilícito penal, no nosso ordenamento jurídico, quando se utiliza o preso de violência, a fuga do preso é um fato antijurídico por ser uma violação do dever expresso no art. 38 da LEP. A principal obrigação legal, fundamental mesmo, inerente ao estado do condenado a pena privativa de liberdade, é justamente a de se submeter o preso a ela, ou seja, a não procurar furtar-se à pena pela fuga ou evasão. Torna-se indiscutível, pois, a obrigação fundamental de cumprir com o dever de se submeter à pena, ou mesmo à prisão preventiva por força do art. 39, parágrafo único, para cuja consecução a Adminstração há de contar com os pertinentes meios coercitivos e disciplinares, sempre combinando justamente um critério de rigor, na defesa da ordem nos estabelecimentos penais, requerido pelas próprias necessidades do internamento, e da demanda social de paz, com o humanismo que inspira toda a reforma penitenciária (MIRABETE, 1997, p. 110).
No mesmo sentido, o parecer do Deputado Luís Antônio Fleury Filho:
Aqueles que dizem que a fuga do preso não pode ser considerada um crime sustentam que é um direito do preso. É uma confusão brutal. A liberdade é um direito do cidadão. Mas, o indivíduo que comete um crime vai retomar à liberdade depois de cumprir sua pena. Se a fuga fosse um direito do preso, o Estado teria que fornecer os meios para ele fugir (FLEURY FILHO, 1999, p.3).
Citando voto vencedor do Ministro Sepúlveda Pertence, ensina Luiz Regis Prado
(2002, p. 742):
A fuga, ao contrário do que costumeiramente se diz, não é um direito, e muito menos o exercício regular de um direito; é simplesmente a fuga, sem violência, um fato penalmente atípico, porque o tipo é a evasão com violência à pessoa. De tal modo que o simples fato de não ser típica a fuga, obviamente, não elide a criminalidade de qualquer crime cometido com vistas à evasão (STF – RE – Voto vencedor do Min. Sepúlveda Pertence – RTJE 80/246)).
Por sua vez, explica o professor Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar:
Ora, se há o direito do Estado de prender, de modo provisório ou definitivo, não poderia haver o direito do réu ou condenado de fugir, pois o exercício desse direito significaria a anulação do outro. O Ministro (Ministro Marco Aurélio, no julgamento do italiano Salvatore Cacciola) referiu-se, com correção, ao fato de que qualquer pessoa, quando presa ou ameaçada de prisão, tem o ardente desejo de preservar ou reconquistar sua liberdade. Isso é plenamente compreensível, mas, de maneira alguma, é justificável em caso de prisão lícita. Utilizando desse mesmo raciocínio, pode-se dizer então que qualquer desejo de alguém é justificável, basta que se queira. Para ilustrar o raciocínio: o homicídio e o estupro são dois crimes encontrados em qualquer sociedade humana. Por isso, podemos considerá-los “naturais e inatos” ao ser humano. Alguém, por acaso, defenderia que essas condutas tornam-se legítimas por isso? Em um Estado de Direito, a discordância da decisão judicial é sempre legítima, mas deve ser exercida dentro dos termos previstos em lei, ou seja, ajuizando as ações e os recursos necessários. [...]
Quando um Ministro do STF considera que a fuga de um réu preso ou mesmo de um condenado é um direito dele, temos um fato gravíssimo que consiste uma mensagem cada vez mais ouvida pela sociedade: o crime compensa, ou seja, seus riscos são tão pequenos que vale a pena cometê-lo. A chance de ser pego é mínima, sendo que no decorrer do processo lhe é permitido mentir e utilizar expedientes protelatórios que podem ter como conseqüência a prescrição da pena. Na eventualidade de ser condenado, pode não ser preso por ausência de vagas no sistema prisional. E agora, caso o seja, poderá fugir, pois este é um "direito" seu! Trata-se de uma demonstração efetiva do "laxismo penal" em ação! (AGUIAR, 2007).
Logicamente, se a lei elenca como falta grave a fuga, o preso tem a obrigação legal e disciplinar de não fugir.
Por todos os fundamentos expostos, deve-se concluir que não existe, no ordenamento pátrio, o direito de fugir, mas sim a obrigação legal do condenado à pena privativa de liberdade, ou do preso provisório, de se submeter à prisão, ou seja, a não procurar furtar-se à pena pela evasão.
3. O estrito cumprimento do dever legal
Optou-se aqui por discorrer sobre a referida excludente por ser a que melhor se afigura na conduta do policial que atira no condenado fugitivo para impedir a evasão. Caso o policial atirasse para defender a si próprio ou a terceiro, além dessa excludente, ainda estaria prevista a justificante da legítima defesa, conforme o caso concreto.
Todavia, como já delimitado, a pretensão aqui é analisar a legalidade do ato do policial que atira no preso que foge, pelo “simples” ato da fuga.
Prevista no art. 23, III, primeira parte do Código Penal, o estrito cumprimento do dever legal é uma causa de exclusão da ilicitude, deixando o fato praticado de ser antijurídico. Quem cumpre regularmente um dever não pode, ao mesmo tempo, praticar ato ilícito, uma vez que a lei não contém contradições (MIRABETE, 2005, p. 188-189).
Aquele que age limitando-se a cumprir um dever que lhe é imposto por lei penal ou extra penal e procede sem abusos no cumprimento desse dever não ingressa no campo da ilicitude. Sob esse raciocínio, estão amparados pela excludente: o policial que cumpre um mandado de prisão, o policial ou o servidor do judiciário que viola o domicílio para cumprir mandado judicial de busca e apreensão, o soldado que elimina o inimigo no campo de batalha, o servidor público que comunica a ocorrência de crime à autoridade, quando dele tenha ciência no exercício das funções (SCHWARTZ, 2007, p. 3). Também “agem em estrito cumprimento do dever legal os policiais que empregam força física para cumprir o dever (evitar fuga de presídio, impedir a ação de pessoa armada que está praticando um ilícito ou prestes a fazê-lo [...]).” (MIRABETE, 2005, p. 189).
Fernando de Almeida Pedroso (1997, p. 378) cita exemplos colhidos da jurisprudência:
De igual forma, o policial que comete lesões corporais, atirando contra a perna de criminoso em fuga, atua sob o pálio do estrito cumprimento do dever legal, como o fazem, em relação aos delitos contra a honra, o funcionário público que emite conceito injurioso ou difamatório sobre alguém, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever de ofício, a testemunha que emita considerações contumeliosas relativas a alguém em resposta a perguntas do magistrado, já que a lei a obriga a declarar a verdade, e o Promotor de Justiça que, ao fundamentar pedido de prisão preventiva, tece consideração desabonadora com relação a outrem.
Embora existam ressalvas por parte da doutrina, a jurisprudência é pacífica no sentido de que mesmo no crime de homicídio poderá ser reconhecida a excludente do estrito cumprimento do dever legal, com a consequente exclusão da antijuridicidade.
Nesse sentido:
Agem em estrito cumprimento do dever legal integrantes de escolta policial que, em diligência, eliminam autor de crime de homicídio que, ao receber voz de prisão, se rebela, fazendo uso de sua arma. (RT 519/409) (citada por FRANCO, 1993, p. 136).
RECURSO DE OFÍCIO. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. CRIME DA COMPETÊNCIA DO JÚRI. LEGÍTIMA DEFESA E ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL. COEXISTÊNCIA DE SITUAÇÕES. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
Age não só em legítima defesa, mas também no estrito cumprimento do dever legal, o policial civil que ao efetuar uma prisão é enfrentado a tiros pelo criminoso e reage, abatendo-o (TJSC. Rec. Crim. nº. 9.640. Rel. Des. Alberto Costa).
Por dever legal se compreende toda e qualquer obrigação direta ou indiretamente derivada de lei. Pode ser a própria lei, como o decreto, o regulamento, ou qualquer ato administrativo infra legal, a exemplo da diretriz, desde que originária de lei. A norma não precisa ser de natureza penal (DELMANTO, 2002, p. 45). Excluem-se as obrigações de natureza social, moral ou religiosa, não previstas em lei (CAPEZ, 2000, p. 243).
Não se admite a excludente nos crimes culposos (JESUS, 2002, p. 104).
4. O dever legal do policial de impedir a fuga do preso
Os trabalhos realizados nas Cadeias Públicas e nas Penitenciárias, no âmbito interno, são realizados por servidores públicos do sistema prisional (agentes prisionais, diretores, médicos, dentistas, enfermeiros, psicólogos, vigilantes contratados junto a empresas de segurança privada).
Por sua vez, a segurança externa nas Cadeias e Penitenciárias estaduais é, geralmente, exercida por guarnições das Polícias Militares com a dupla função de impedir a fuga dos presos e neutralizar possíveis invasões externas, que objetivem resgatar condenados integrantes de organizações criminosas ou eliminar reclusos líderes de facções rivais.
Assim atuando, a Polícia Militar exerce sua competência de preservar a ordem pública, evitando que condenados perigosos se evadam e retornem ao convívio social, voltando a violentar a sociedade.
No exercício desse mister, o policial deve ter toda a estrutura necessária para garantir a segurança do estabelecimento e utilizar os meios legais, necessários e adequados para impedir a evasão/invasão.
Como o objetivo do presente estudo é a fuga do preso, focar-se-á somente esse tópico, deixando a questão das invasões para outro momento.
As ordens e as normas relativas ao policiamento preceituam que o policial deve evitar a fuga dos presos. E, para isso, utilizar-se de todos os meios possíveis.
Em Santa Catarina, a Diretriz de Procedimento Permanente nº. 020/CMDOG/8 estabelece os deveres do policial militar empregado no policiamento nas Cadeias Públicas e Penitenciárias. Entre esses deveres estão:
15) SÃO RESPONSABILIDADES DA GUARDA EXTERNA DE ESTABELECIMENTOS PENAIS:
a) Exercer completa vigilância e fiscalização para que presos não tentem fuga pelas janelas, muros ou outra qualquer rota de fuga;
[...]
17) DEVERES DOS POLICIAIS MILITARES COMPONENTES DA GUARDA:
a) Exercer completa vigilância e fiscalização para que os presos não tentem fuga; [...]
h) Como se vê, o componente da guarda não pode ficar inativo na ocorrência de fuga de preso;
i) Por dever funcional ele deve obstar a fuga de presos por todos os meios possíveis; (GRIFO NOSSO)
A referida Diretriz é norma administrativa pública que decorre de norma legal prevista no art. 144, § 5º, da Constituição da República (preservação da ordem pública), art. 107, I, “a”, da Constituição do Estado de Santa Catarina (exercer a polícia ostensiva relacionada com a preservação da ordem e da segurança pública) e art. 2º, X, da Lei Estadual 6.217/83 (manter a segurança externa dos estabelecimentos penais do Estado).
Dessa forma, repita-se, é dever legal do policial impedir a fuga do preso. E quem age no cumprimento do dever não pratica ato ilícito, uma vez que a lei não contém contradições.
Para evitar a fuga do preso, o policial deverá usar de todos os meios necessários, como acionar os alarmes, conter os detentos, cercá-los, chamar reforços, usar a força necessária em caso de violência ou resistência e, em última hipótese, atirar nos fugitivos. Essa última medida, somente de modo subsidiário quando não houver outro meio não-letal.
5. Fuga na penitenciária: o policial pode atirar no preso que foge?
Como já se delimitou, não se cogita aqui da circunstância do policial atirar no preso que foge mediante violência à pessoa, pois, nesse caso, estará claramente evidenciada a legítima defesa própria ou de terceiros e o estrito cumprimento do dever legal, conforme o caso concreto e desde que executada nos limites legais.
A discussão ora tratada, cuida do condenado que se evade sem empregar violência alguma. Ele só foge. Afinal, poderia o policial atirar para impedir a fuga? O Estado tem esse direito?
Existem dois entendimentos.
A corrente que nega a legalidade do ato de atirar no preso que foge, defende que no Brasil não há pena de morte em tempos de paz, assim, o policial não pode matá-lo pela simples fuga; atirar seria desproporcional, pois o preso não estaria exercendo agressão alguma; deve-se buscar um meio não-letal para impedir a fuga e, em último caso, o policial deve deixar fugir e não atirar.
A respeito do tema, colhem-se decisões do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Como a legislação brasileira proíbe a pena de morte, não existe, em consequência, a profissão de carrasco. Atirar numa pessoa em fuga, como ocorreu no caso em tela, contraria o conceito de estrito cumprimento do dever legal, não só porque o agente não cumpria nenhuma ordem superior, mas, principalmente, porque a medida utilizada pelo acusado foi excessiva, desnecessária, incompatível com a realidade daquele momento. (RJTJERGS 148/116)”. (MIRABETE, 2005b, p. 229).
[...] No mérito, inquestionável e induvidosa a autoria do delito imputado ao apelante.
Policial militar que, de serviço em estabelecimento penitenciário, faz uso de seu revólver para reduzir a resistência consistente na fuga de detento não age ao abrigo da excludente de ilicitude (estrito cumprimento do dever legal).
Sentença condenatória mantida, à unanimidade. (TRIBUNAL MILITAR DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Criminal n° 3.516/03, Rel. Juiz Cel. Sergio Antonio Berni de Brum, j. em 17/03/2004).
Por outro lado, os que entendem ser legal a conduta do policial de atirar no preso que foge, defendem desde que não haja, no momento, outro meio de impedir a fuga do preso, pode o policial, após advertir o detento para não fugir e este não acatar a ordem, atirar no preso, estando amparado pela excludente do estrito cumprimento do dever legal. O preso não tem o direito de fugir e o interesse da sociedade em ter garantida a sua segurança da ação de criminosos deve se sobrepor ao interesse do condenado em evadir-se. Essa é uma medida extrema, em defesa da sociedade, que só se aplica ultima ratio.
Nesse sentido, já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná:
“Agem no estrito cumprimento do dever legal os soldados que, alertados pelo cabo de dia quanto à fuga de presos e não atendidos na ordem de que parassem, fazem disparos, porém um dos disparos atinge letalmente um dos fugitivos (RT 473/368)”.
(Mirabete, 2005b, p. 227).
Reformando sentença condenatória, a Corte de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, em acórdão unânime, recentemente decidiu:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – HOMICÍDIO CONSUMADO E HOMICÍDIO TENTADO – DESCLASSIFICAÇÃO PARA LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE E LESÃO CORPORAL – PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – POLICIAIS MILITARES QUE ATIRARAM CONTRA DETENTOS EM FUGA – EXCESSO NÃO CONFIGURADO – EXCLUDENTE DE ILICITUDE – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – RECURSOS PROVIDOS – UNÂNIME.
Age no estrito cumprimento de dever legal o policial que atira contra detento em fuga, valendo-se dos meios necessários, sem excesso, dele não se podendo exigir outra conduta, porquanto esse é o munus que o Estado lhe confere, autorizando-o, inclusive, a portar arma de fogo, devidamente municiada.
(TJDF. RSE n.° 1999.08.1.002582-2, Rel.: Des. LECIR MANOEL DA LUZ, j. em 08/09/2005).
No mesmo sentido:
Recurso de ofício. Absolvição sumária. Estrito cumprimento do dever legal.
A absolvição sumária aplicada ao policial militar que, para obstar fuga e na iminência de ser agredido, atira e mata, não deve ser cassada. Absolvição mantida. (TJRO. Rec. de Oficio nº. 20000019990016790, Rel.: Des. Antonio Cândido, j. em 16/09/1999).
RESPONSABILIDADE CIVIL. MORTE DE PRESO QUE TENTAVA SE EVADIR. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. EXERCÍCIO DE DEVER LEGAL. CULPA DA VÍTIMA.
Circunstância em que apenado é morto por tiro desferido por autoridade policial quando buscava evadir-se de presídio. Dever do Estado em fazer cumprir sua função de promover a segurança de seus cidadãos. Suprime-se a relação de causa e efeito entre o agir e o dano pela culpa exclusiva da vítima. Legítimo exercício de dever legal do agente estatal que busca impedir a tentativa de fuga, atirando em apenado que já se evadia e ignora tiro de advertência. Apelo improvido. Decisão unânime." (TJRS. Apelação Cível nº. 70003216835, Rel.: Des. Jorge Alberto Schreiner Pestana, j. em 01/08/2002).
Razão assiste a essa segunda corrente.
Desde que não exista outro meio de impedir a fuga do preso, age no estrito cumprimento do dever legal o policial que atira no preso que foge, para impedir a evasão. Seria totalmente incoerente atribuir ao policial à obrigação de fazer a segurança do estabelecimento penal e retirar os meios necessários para impedir eventuais evasões dos condenados. A lei atribuiria o dever e, ao mesmo tempo, retiraria a franquia que a sociedade lhe concede. Dar-se-ia a obrigação de evitar a doença, mas se retiraria a vacina.
Segundo a primeira corrente, a única coisa que os agentes estatais poderiam fazer para evitar as fugas seria “perseguir os fugitivos, detendo-os apenas com o desforço físico necessário à sua imobilização”. Por tal entendimento, o agente da lei tem o dever legal de expor sua própria vida em detrimento do sacrifício da vida do fugitivo.
Evidente se mostra a incoerência: o policial que é o defensor da sociedade, pode morrer; o condenado não.
No Recurso em Sentido Estrito nº. 1999.08.1.002582-2, do TJDFT, acima citado, extrai-se, do corpo do Acórdão, parecer da Procuradoria de Justiça que dirime qualquer dúvida:
Tenho para mim que o estado brasileiro, em seus diversos níveis, comporta-se de forma confusa no enfrentamento de tal problema.
Isso porque a lei penal prevê que indivíduos que rompem o pacto social e praticam crimes sejam encarcerados, não só como punição, como também pela necessidade, e por questões de segurança, de manter-se afastados aqueles elementos considerados perigosos ao convívio social.
As discussões sobre a necessidade das penas de prisão têm se desenvolvido no sentido de que só devem ser mandados para os presídios aqueles indivíduos que representem perigo para a sociedade.
Todavia, e aí reside questão de rara complexidade, alguns seguimentos do pensamento jurídico,liberaris por excelência, entendem que os presidiários, independentemente de sua periculosidade, têm o direito de fugir e de, até mesmo, destruir o patrimônio público na busca da fuga, sem que isso constitua qualquer ilícito penal, quiçá administrativo.
Segundo esses, a única coisa que os agentes estatais poderiam fazer para evitar as fugas seria ‘perseguir os fugitivos, detendo-os apenas com o desforço físico necessário à sua imobilização’. Segundo tal entendimento, o agente da lei tem o dever legal de expor sua própria vida em detrimento do sacrifício da vida do fugitivo.
[...].
Entendem os partidários de tal corrente liberal, que não se pode, em tais casos, alegar as excludentes de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal e do exercício regular de direito.
É certo que as excludentes de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal e do exercício regular de direito, não constituem, evidentemente, nenhum alvará que permita os agentes públicos sacrificarem, indiscriminadamente, a vida daqueles que estão submetidos ao sistema prisional.
Todavia, não se pode aceitar o outro extremo, ou seja, de que aqueles que estão submetidos ao sistema prisional, por decisões judiciais, possam dele evadir-se sem que isto constitua ilícito penal e que estejam os agentes estatais impedidos de agir com o objetivo de fazer valer a vontade do estado, consubstanciada numa decisão judicial.
Como ensinou Nelson Hungria:
“Nenhum direito subjetivo individual, ainda que de caráter privatístico, pode gravitar fora da órbita do interesse social. Se o direito civil, por exemplo, disciplinando esta ou aquela facultas agendi, autoriza, para assegurar-lhe o pleno exercício, a prática de um fato que, em outras condições, constituiria crime, tem-se de entender que assim dispõe, não apenas por amor ao direito individual em si, mas também no interesse da ordem jurídica em geral.
Tal dispositivo, portanto, não pode deixar de repercutir sobre o direito penal. A explícita ressalva, como princípio genérico do direito penal, no sentido de que um fato definido in abstracto como crime passa a ser lícito quando represente o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever legal, pode parecer uma super-fluidade; mas, não é assim. Para dirimir quaisquer dúvidas que acaso pudessem ser suscitadas, significa, uma advertência ao juiz, para que tenha em conta todas as regras de direito, mesmo extrapenais, que, no caso vertente, podem ter por efeito a excepcional legitimidade do fato incriminado.
Mais ainda se justifica essa ressalva expressa, quando sua fórmula sirva também para frisar que a licitude excepcional do fato está rigorosamente condicionada aos limites traçados ao exercício do direito ou ao cumprimento do dever legal. É o que faz o nosso Código, que, no art. 23, inciso III, somente reconhece a inexistência de crime quando o agente pratica o fato ‘em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito’.” (HUNGRIA, 1958, p. 309).
Necessário salientar que se considerarmos crime a conduta do policial que atira no preso que foge, ficará o soldado entre a cruz e a espada, pois se não impedir a evasão, poderá vir a ser processado por crime de facilitação de fuga (art. 351, do CP), além de responder administrativamente sob os rigores do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, que não raras vezes se mostra mais severo que a legislação penal comum, recheada de benefícios advindos da política de direito penal mínimo. Sobre esse argumento, cabe citar trecho do acórdão da Apelação Criminal nº. 2001.01.1.046092-5, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, de relatoria do Desembargador Edson A. Smaniotto:
“Colocada nestes termos a questão, temos que os agentes públicos encarregados da guarda dos presídios possuem normas de caráter administrativo, em especial os militares, que lhes permitem, ou melhor, que lhes impõem, o uso de armas com o objetivo de evitar fugas daqueles que estão encarcerados por decisão do próprio estado. Portanto, estão presos por ordem legal de autoridade competente.
(...).
Nesta linha de raciocínio, não se pode admitir é que o estado aja de forma desleal com seus agentes, ou seja, o estado executivo, no caso a PMDF, que determina a seus agentes que atirem em presos fugitivos, sem que detenha controle sobre a conseqüência dos fatos, na medida em que a avaliação da conduta está submetida a outro ente estatal, no caso o Ministério Público e o julgamento ao Poder Judiciário.
Em suma, o soldado se vê entre a ‘cruz e a espada’, pois sua omissão (não atirar) será interpretada, no âmbito da PMDF, como desobediência, sujeita às sanções disciplinares cabíveis, nos estritos termos da obediência hierárquica devida e dos planos de segurança estabelecidos para os presídios, com sérias conseqüências para a carreira militar.
Há que se considerar, todavia, que a Polícia Militar, o Ministério Público e o Poder Judiciário são entes do Estado Brasileiro, não se podendo transferir ao elo mais fraco da corrente, no caso os soldados/réus, as responsabilidades e as conseqüências das divergências interpretativas dos textos legais.
O que se espera de tais entes estatais é um mínimo de entendimento que permita dar segurança à sociedade, que não quer ver presos fugindo, e aos agentes estatais encarregados da segurança dos presídios, que não querem responder a processos criminais, com sérios comprometimentos para suas carreiras e vida pessoal.”
O policial que atira no preso que foge estará agindo em defesa da sociedade, que não pode ficar à mercê da violência cometida pelos criminosos.
Pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, a lei dá à Administração Pública os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, tendo em vista atender o interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Logo, a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei, não pode deixar de exercer o poder de polícia para coibir o exercício dos direitos individuais em conflito com o bem estar coletivo (MEIRELLES, 2007, p. 103). Cada vez que a autoridade pública se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado (DI PIETRO, 2007, p. 61).
Portanto, a segurança pública, que é um direito social (art. 6º, da CRFB), do qual decorre o interesse coletivo da sociedade de permanecer segura, é superior ao interesse individual do preso em evadir-se, devendo o policial atirar para impedir a fuga do preso, caso não disponha de outro meio não-letal no momento.
6. Considerações finais
O objetivo aqui não foi fazer cessar os debates a respeito do tema, nem fomentar a ideia de que o policial deve sair atirando desnecessariamente, sem amparo das excludentes legais, mas trazer argumentos de correntes antagônicas de um assunto sobre o qual muito se discute e pouco se escreve.
Ante a previsão do dever do preso de submeter-se à pena e ter conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga, o alegado “direito de fugir” não existe. O preso é obrigado a aceitar a condenação e cumprir a pena que lhe foi imposta. Se o “direito de fugir” existisse, o Estado teria de garantir ao preso os meios de alcançá-lo e não poderia puni-lo, como as leis autorizam, por sua evasão.
O policial, por sua vez, tem o dever legal de impedir a fuga do preso, devendo usar dos meios necessários colocados a sua disposição, não podendo, esse dever, ser restringido, sob o argumento de que a vida do fugitivo deve ser preservada em detrimento da segurança da sociedade que já fora por ele violentada antes do seu encarceramento. Também não se poderia dizer que a única coisa que os agentes estatais poderiam fazer para evitar as fugas seria perseguir os fugitivos, detendo-os apenas com o desforço físico necessário à sua imobilização. Pois, tal entendimento acarretaria a exposição da vida do agente da lei em detrimento do sacrifício da vida do fugitivo. O policial poderia morrer; o fugitivo não.
Nesse diapasão, desde que não exista, no momento, outro meio de impedir a fuga do condenado ou esgotados todos os recursos necessários sem a obtenção de êxito, pode o policial atirar para neutralizar o fugitivo, estando amparado pela excludente do estrito cumprimento do dever legal.
Agirá, assim, em defesa da sociedade, que não pode voltar a sofrer violência de pessoas que foram retiradas de seu seio justamente por quebrar o contrato social. O interesse público e social pela segurança é superior ao interesse privado do condenado em evadir-se.
REFERÊNCIAS
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DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. 6.ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
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FLEURY FILHO, Luís Antônio. In: Pronunciamento na Câmara dos Deputados – Brasília (Brasil) em 12/11/1999, na proposta de instituição do Ministério da Segurança Pública. Disponível em:. Acesso em 11 nov. 2009.
FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 4.ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
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MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código penal interpretado. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005.
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MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. 22.ed. São Paulo: Atlas, 2005. v.1.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33.ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 7.ed. rev. atual. e ampl. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
PEDROSO, Fernando de Almeida. Direito penal: parte geral. 2.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: EUD, 1997.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial: arts. 289 a 359-H. 2.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
SCHWARTZ, Diego. A responsabilidade civil do policial militar no crime de homicídio praticado em serviço. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1632, 20 dez. 2007. Disponível em:
Revista Jus Vigilantibus, Domingo, 24 de janeiro de 2010
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