Informação policial e Bombeiro Militar

sexta-feira, 22 de julho de 2011

A via crúcis policial


1. Imaginemos um caso hipotético: João Maria Silva Sanches e Diego Francoia, ambos policiais, receberam ordem de seu superior hierárquico para interceptar um caminhão que transportava 100 kg de cocaína.

2. Ao se deslocarem a BR XXX, lograram êxito em vislumbrar o referido caminhão, o qual empreendia alta velocidade. Na tentativa de alcançar os traficantes de droga, imprimiram velocidade de aproximadamente 130 km/h. Entretanto, em uma curva, o policial condutor perdeu o controle da viatura, vindo à mesma a capotar, ocasionando a perda total do veículo. Diego, durante o capotamento, extraviou o rádio comunicador que pertencia ao Estado.

3. Diante destes fatos foi aberto procedimento disciplinar interno no qual se concluiu pelo arquivamento ante a flagrante ocorrência do estrito cumprimento de um dever legal. Ocorre que o Controle Interno discordou do arquivamento, afirmando que o policial ao ultrapassar o limite da via – 110 km/h – praticou infração disciplinar de descumprimento de leis e regulamentos, no caso o Código de Trânsito, devendo ser punido administrativamente pelo ato, inclusive devendo pagar do próprio bolso os danos sofridos pela Estado, qual seja: o valor integral da viatura R$ 50,000,00 e o valor do rádio comunicador: R$ 1.000,00. Afirmou ainda este órgão que o êxito da operação policial nunca pode se sobrepor a segurança dos passageiros;

4. Deixaremos de comentar os fatos sobre o aspecto policial, operacional ou mesmo até do bom senso. Passamos diretamente a uma análise jurídica.

5. O caso cinge-se em se saber se o servidor policial ao conduzir viatura oficial acima do permitido pela via, em perseguição policial, transgride infração disciplinar ou regimento interno de órgão policial.

6. Os policiais em referência estavam em perseguição policial no momento dos fatos e necessitavam auferir maior velocidade para interceptar o veículo perseguido, ou seja, estavam agindo no estrito cumprimento do dever legal, qual seja, o disposto no artigo 301 do Código de Processo Penal, que assim dispõe:

" Qualquer um do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito"

7. Ao pensar o contrário, seria interpretar o estrito cumprimento do dever legal de forma descomprometida com a natureza jurídica do instituto e até mesmo com a ordem jurídica. Explico. O estrito cumprimento de um dever legal não deve ser analisado sob a ótica das excludentes de ilicitude, mas sim da própria tipicidade.

8. Conforme bem preleciona o penalista argentino Eugenio Raul Zaffaroni – Teoria do Funcionalismo Reducionista [01] - contraria a lógica jurídica o sujeito praticar um ato que é ordenado ou fomentado pelo Estado e ao mesmo tempo este ato ser típico. Não é lógico, por exemplo, um oficial de justiça que recebe uma ordem judicial para arrecadar um bem móvel de terceiro, ter praticado conduta típica de furto, mas não ilícita pelo estrito cumprimento de um dever legal. Não é lógico que o Estado ordene algo com uma mão e com a outra diga que a conduta é típica. Da mesma forma não é lógico as condutas que o Estado fomenta e incentiva serem tratadas como condutas típicas, por exemplo, o médico que realiza intervenção cirúrgica com fins terapêuticos, para os clássicos, pratica conduta típica de lesão corporal, mas não ilícita porque está no exercício regular de um direito. Isto não é lógico segundo Zaffaroni. Como pode o Estado incentivar, através do direito sanitário, cirurgias com fins terapêuticos e ao mesmo tempo dizer que isto é conduta típica? Por isto, para o direito penal moderno, pós clássico, tipicidade é a soma da tipicidade formal, material e conglobante (sinônimo de antinormatividade), ou seja, para se afirmar que uma conduta é típica, ela deve ter subsunção à lei (tipicidade formal), lesão ao bem jurídico (tipicidade material) e ainda tipicidade conglobante (conduta antinormativa). Assim, o sujeito que age no estrito cumprimento de um dever legal está cumprindo uma ordem não manifestamente ilegal do Estado e, portanto, sequer é típica sua conduta.

9. No caso hipotético, é nítido que os policiais estavam no estrito cumprimento de um dever legal, qual seja: prender em flagrante os traficantes de cocaína, os quais estavam no veículo perseguido, portanto, entendo, não há que se cogitar em infração disciplinar ou ressarcimento dos danos ao veículo ou ao rádio que portava o ocupante da viatura, simplesmente pela atipicidade de suas condutas;

10. Por outro lado, ao se analisar os fatos sob a ótica da Teoria da Imputabilidade Objetiva, mais robusto fica este entendimento. É cediço que referida teoria, desenvolvido pelo filósofo e jurista Claus Roxin [02], leva em conta a criação de riscos. Assim, em uma análise superficial, aquele que cria um risco permitido não terá contra si a imputação da conduta praticada, por outro lado, aquele que desenvolve um risco proibido, sofrerá o ônus da imputação pela conduta desenvolvida. É certo também que tal teoria veio para funcionar como uma limitadora da conditio sine quo non, adotada pelo Código Penal Brasileiro para o estudo do nexo causal – art. 13 do CP, ou seja, em primeira análise, causa é toda ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido e assim aquele que deu causa ao resultado responderá na medida de sua culpabilidade. Entretanto esta contribuição para o resultado necessita de limites, sob pena de se regressar ao infinito. Imagine o sujeito que fabrica a arma de fogo e outro que mata seu desafeto. Poderíamos pensar que aquele que fabricou a arma deu causa ao resultado e a ele seria imputado o resultado. Entretanto, como primeiro limitador deste desdobramento causal tem-se o dolo, ou seja, imputa-se o resultado àquele que agiu com dolo, assim, no exemplo acima, imputar-se-ia o resultado apenas àquele que atirou com dolo de matar e não àquele que fabricou a arma. Ocorre que a questão não é tão singela como representa, uma vez que a Teoria da Imputabilidade Objetiva também funciona como limitadora do nexo causal, assim como o dolo. Desta forma aquele que criou um risco permitido não terá contra si a imputação do resultado pelo rompimento do nexo causal, isto é, exclui-se a própria tipicidade da conduta.

11. No caso hipotético, ao desenvolver velocidade acima do permitido na via, João Maria estava cumprindo com o seu dever como policial, ou seja, é mandamento legal e imperativo ao policial o ato de prender em flagrante delito, portanto, o risco criado com esta conduta é um risco permitido e aceito pelo ordenamento jurídico. Assim, não há que se cogitar em imputação objetiva do resultado ao servidor quando desenvolve um risco permitido, como é o caso.

12. Raciocinar ao contrário seria inviabilizar o próprio trabalho policial. Seria algo como iniciar uma perseguição e ter que interrompê-la porque ultrapassou o limite de velocidade da via. É evidente que a segurança dos passageiros deve se sobrepor ao êxito da operação, mas como saber em que momento a segurança está sendo violada? Pelos simples sinais de trânsito? Assim aquele que ultrapassa o limite de 60 km/h em via urbana, em perseguição, deverá interrompê-la? Penso que uma viatura policial ao desenvolver uma velocidade acima de 110 km/h não está por si só comprometendo a segurança dos seus ocupantes. Os riscos decorrentes das ações policiais são inerentes ao próprio trabalho desenvolvido.

13. Por outro lado, é lógico, caso os policiais estivessem se deslocando para proceder a uma intimação, não se justificaria o excesso de velocidade, aí, neste momento, estar-se-ia criando um risco proibido, simplesmente porque desnecessário, podendo, neste exemplo, imputar-lhes o resultado;

14. Assim, tanto no que se refere à Teoria da Tipicidade Conglobante de Eugenio Raul Zaffaroni, como na Teoria da Imputabilidade Objetiva de Claus Roxin, não há que se cogitar em irregularidade daquele que está no cumprimento de um dever legal imposto pelo Estado, seja porque recebe uma ordem legal ou porque não desenvolveu um risco proibido, sendo que, em qualquer dos casos, resulta-se em atipicidade da conduta.

Solon Cicero Linhares é:

Professor de Direito Penal e Processo Penal da PUC/PR. Professor convidado da Escola da Magistratura Federal do Paraná.Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito da UNICURITIBA. Especialista. Mestre pela UFPR.

Fonte: Jus Navigandi http://jus.uol.com.br/revista/texto/19593/a-via-crucis-policial

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