10/06/2015 - Copyleft
A necessidade de um programa de esquerda para a segurança
As soluções são claras: desmilitarização, ciclo completo e criação do cargo único. Contudo, do ponto de vista de prático, vários são os desafios.
Gleide Andrade Oliveira
A polícia surge no Brasil, como em todo o mundo, com o papel de preservação daquilo que se pode chamar, num plano muito geral, de “ordem pública”. A despeito de no passado terem lhe sido reservadas atividades que hoje soam esdrúxulas como o zelo do espaço público (iluminação, calçamento etc.), transparece desde sua origem a proeminência de sua função de controle sobre a sociedade, notadamente sobre as camadas mais populares.
Isso porque o que é considerado “normal”, o aceitável, o desejável, geralmente é definido pelo conjunto de indivíduos ocupantes do ápice da pirâmide social. Esse fenômeno toma, em países histórica e profundamente marcados pelo patrimonialismo, como é o caso do Estado brasileiro, contornos assaz drásticos, com os inerentes reflexos sobre a atuação de suas polícias, acompanhando-as ainda na atualidade.
Entre a vinda da família real e a Constituição de 1988, a evolução dos órgãos policiais no Brasil vivenciou movimentos pontualmente paralelos, quais sejam, os processos de especialização e militarização, em meio à prevalente submissão ao poder central (à corte imperial ou à União federal), entremeada por eventuais períodos de relativa autonomia concedida às províncias, estados-membros e municípios.
O golpe empresarial-militar de 1964 parece trazer o momento de maior ascendência do poder central sobre a estrutura das polícias, valendo citar, como exemplo, o fato de que todos os postos de comandantes das polícias militares eram ocupados por oficiais do Exército. Foi criada a Polícia Federal, que aliada aos serviços de informações das Forças Armadas, das próprias polícias e ao Sistema Nacional de Informação (SNI), além de outros entes, tinha agora também como atribuição o combate ao “inimigo interno” representado pelas forças de resistência ao regime.
A estruturação geral existente nesse contexto não fez senão, obviamente, aprofundar o já vigente viés das polícias enquanto braços armados a serviço do governo e de seus apoiadores nas funções de manutenção da ordem e controle social.
Chega a redemocratização, e a Assembleia Nacional Constituinte não promove – não só por pressões corporativas, mas sobretudo pela ação de grupos hegemônicos interessados na perpetuação da lógica narrada, que bem lhes servira – nenhuma mudança de fundo na formatação herdada do regime militar.
Assim, hoje temos como base de nossa estrutura de segurança o plexo Polícia Civil/Polícia Militar aliadas a polícias especializadas (Federal e Rodoviária Federal) e a crescente importância das guardas municipais, instituições às quais foi recentemente conferido poder de polícia. Isso para não mencionar os mais de 1 milhão de seguranças privados existentes no país.
E, diante dessa nada singela estrutura, os mais escabrosos números. A violência ceifa a vida de cerca de 60 mil brasileiros todos os anos, ao passo que apenas 8% dos homicídios são elucidados. Os percentuais de elucidação de crimes contra o patrimônio chegam a ser desprezíveis.
Mesmo a Polícia Federal, enxergada pela sociedade como uma ilha de excelência em razão de suas notórias operações, não foge à regra. Segundo dados do Ministério Público Federal, considerados os anos de 2010, 2011 e 2012, apenas 8,3% dos inquéritos policiais serviram de base efetiva para que os procuradores oferecessem denúncias ao Judiciário, ou seja, trouxeram algo de útil enquanto resultado dos trabalhos, já incluídos aí os casos de flagrante delito. Estes, por sua natureza, de regra esgotam de pronto a investigação.
Aliás, a 7ª Câmara de Coordenação e Revisão, responsável em última instância pelo controle externo da atividade policial no MPF, já teve oportunidade de assim se manifestar acerca do método atualmente vigente: "Tem-se aqui em vista que o inquérito policial mostra-se uma ferramenta anacrônica e burocratizante, que privilegia o modelo cartorial em detrimento de uma efetiva apuração dos fatos, com o propósito de subsidiar a titular da ação penal com os elementos necessários para a formação da opinio delicti".
As causas imediatas dessa tragédia, no que concerne especificamente às polícias, são várias. Mas não se pode perder de vista o que sempre as permeia: a concepção de polícia historicamente prevalente, que afasta sua atuação dos objetivos primordiais de “proteger e servir” os cidadãos; o engessamento da estrutura promovido por sua inserção no texto constitucional; os ônus políticos de toda sorte advindos de eventuais alterações efetivas no modelo, uma vez que o tema é encarado como “vespeiro” pelos governantes.
Mostras disso se veem no fato de que desde um passado próximo, resguardadas disparidades naturais de uma Federação, vêm sendo feitos vultosos investimentos nas estruturas, equipamentos, quadros e salários das corporações policiais. Se é certo que eles ainda estão longe do ideal, razoável seria esperar que resultassem em decréscimo da criminalidade, quando, em verdade, acontece o oposto.
As polícias militares ressentem-se primeiramente do próprio fato de serem militares, formalmente designadas como “forças auxiliares e reserva do Exército”. A hierarquia militar justifica-se por atender ao pressuposto do pronto emprego, momento em que não é oportuno dar aos subordinados a prerrogativa de pensar, ter escolhas. Muito conveniente num teatro de operações em que a ideia é o combate a um inimigo declarado, mas difícil de conciliar com o ideal de uma polícia “cidadã”, garantidora de direitos e imbuída na missão de servir e proteger.
A despeito da mudança formal da maior parte dos currículos das academias, o fato é que ainda hoje o policial militar recebe formação para ir à guerra.
Um paradoxo incompreensível à luz do direito comparado é não ser dada às polícias militares, que têm o maior contingente – cerca de 500 mil policiais – e o contato mais imediato com os fatos delituosos, a prerrogativa de investigar. Por força de disposição constitucional, só lhes cabem “a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”.
Isso porque o que é considerado “normal”, o aceitável, o desejável, geralmente é definido pelo conjunto de indivíduos ocupantes do ápice da pirâmide social. Esse fenômeno toma, em países histórica e profundamente marcados pelo patrimonialismo, como é o caso do Estado brasileiro, contornos assaz drásticos, com os inerentes reflexos sobre a atuação de suas polícias, acompanhando-as ainda na atualidade.
Entre a vinda da família real e a Constituição de 1988, a evolução dos órgãos policiais no Brasil vivenciou movimentos pontualmente paralelos, quais sejam, os processos de especialização e militarização, em meio à prevalente submissão ao poder central (à corte imperial ou à União federal), entremeada por eventuais períodos de relativa autonomia concedida às províncias, estados-membros e municípios.
O golpe empresarial-militar de 1964 parece trazer o momento de maior ascendência do poder central sobre a estrutura das polícias, valendo citar, como exemplo, o fato de que todos os postos de comandantes das polícias militares eram ocupados por oficiais do Exército. Foi criada a Polícia Federal, que aliada aos serviços de informações das Forças Armadas, das próprias polícias e ao Sistema Nacional de Informação (SNI), além de outros entes, tinha agora também como atribuição o combate ao “inimigo interno” representado pelas forças de resistência ao regime.
A estruturação geral existente nesse contexto não fez senão, obviamente, aprofundar o já vigente viés das polícias enquanto braços armados a serviço do governo e de seus apoiadores nas funções de manutenção da ordem e controle social.
Chega a redemocratização, e a Assembleia Nacional Constituinte não promove – não só por pressões corporativas, mas sobretudo pela ação de grupos hegemônicos interessados na perpetuação da lógica narrada, que bem lhes servira – nenhuma mudança de fundo na formatação herdada do regime militar.
Assim, hoje temos como base de nossa estrutura de segurança o plexo Polícia Civil/Polícia Militar aliadas a polícias especializadas (Federal e Rodoviária Federal) e a crescente importância das guardas municipais, instituições às quais foi recentemente conferido poder de polícia. Isso para não mencionar os mais de 1 milhão de seguranças privados existentes no país.
E, diante dessa nada singela estrutura, os mais escabrosos números. A violência ceifa a vida de cerca de 60 mil brasileiros todos os anos, ao passo que apenas 8% dos homicídios são elucidados. Os percentuais de elucidação de crimes contra o patrimônio chegam a ser desprezíveis.
Mesmo a Polícia Federal, enxergada pela sociedade como uma ilha de excelência em razão de suas notórias operações, não foge à regra. Segundo dados do Ministério Público Federal, considerados os anos de 2010, 2011 e 2012, apenas 8,3% dos inquéritos policiais serviram de base efetiva para que os procuradores oferecessem denúncias ao Judiciário, ou seja, trouxeram algo de útil enquanto resultado dos trabalhos, já incluídos aí os casos de flagrante delito. Estes, por sua natureza, de regra esgotam de pronto a investigação.
Aliás, a 7ª Câmara de Coordenação e Revisão, responsável em última instância pelo controle externo da atividade policial no MPF, já teve oportunidade de assim se manifestar acerca do método atualmente vigente: "Tem-se aqui em vista que o inquérito policial mostra-se uma ferramenta anacrônica e burocratizante, que privilegia o modelo cartorial em detrimento de uma efetiva apuração dos fatos, com o propósito de subsidiar a titular da ação penal com os elementos necessários para a formação da opinio delicti".
As causas imediatas dessa tragédia, no que concerne especificamente às polícias, são várias. Mas não se pode perder de vista o que sempre as permeia: a concepção de polícia historicamente prevalente, que afasta sua atuação dos objetivos primordiais de “proteger e servir” os cidadãos; o engessamento da estrutura promovido por sua inserção no texto constitucional; os ônus políticos de toda sorte advindos de eventuais alterações efetivas no modelo, uma vez que o tema é encarado como “vespeiro” pelos governantes.
Mostras disso se veem no fato de que desde um passado próximo, resguardadas disparidades naturais de uma Federação, vêm sendo feitos vultosos investimentos nas estruturas, equipamentos, quadros e salários das corporações policiais. Se é certo que eles ainda estão longe do ideal, razoável seria esperar que resultassem em decréscimo da criminalidade, quando, em verdade, acontece o oposto.
As polícias militares ressentem-se primeiramente do próprio fato de serem militares, formalmente designadas como “forças auxiliares e reserva do Exército”. A hierarquia militar justifica-se por atender ao pressuposto do pronto emprego, momento em que não é oportuno dar aos subordinados a prerrogativa de pensar, ter escolhas. Muito conveniente num teatro de operações em que a ideia é o combate a um inimigo declarado, mas difícil de conciliar com o ideal de uma polícia “cidadã”, garantidora de direitos e imbuída na missão de servir e proteger.
A despeito da mudança formal da maior parte dos currículos das academias, o fato é que ainda hoje o policial militar recebe formação para ir à guerra.
Um paradoxo incompreensível à luz do direito comparado é não ser dada às polícias militares, que têm o maior contingente – cerca de 500 mil policiais – e o contato mais imediato com os fatos delituosos, a prerrogativa de investigar. Por força de disposição constitucional, só lhes cabem “a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”.
Créditos da foto: Brigada Militar
Fonte: Carta Capital
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