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quarta-feira, 20 de maio de 2015

Prova obtida mediante violação de domicílio em crime de tráfico de drogas caracteriza falta de justa causa para a ação penal


Em parecer nos autos n. 0506508-96.2014.8.05.0001, em tramitação no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, o Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira emitiu parecer pela nulidade do processo em razão da falta de justa causa para a ação penal, uma vez que a suposta materialidade do crime de tráfico de drogas deu-se a partir da violação de domicílio. Diante da habitualidade com que esta prática vem ocorrendo na praxis policial, especialmente no atendimento às ocorrências criminais e, consequentemente, vem sendo abordada nas decisões judiciais, o assunto merece um estudo aprofundado a fim de que delimite a (i)legalidade dos atos efetuados por agentes públicos.

O brilhante parecer de Rômulo Moreira aborda a temática de forma exaustivamente fundamentada. Além disso, também defende a nulidade do processo decorrente da realização do interrogatório previamente à oitiva das testemunhas. A íntegra do parecer segue abaixo e recomenda-se a leitura.

Rômulo de Andrade Moreira lançou recentemente o livro “O Procedimento Comum” pela Editora do Empório do Direito (confira aqui), além de ser articulista do site, com diversos artigos (confira aqui).


MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

PROCURADORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL

  

PROCESSO Nº. 0506508-96.2014.8.05.0001 – APELAÇÃO CRIMINAL

ORIGEM: SALVADOR – BA

ÓRGÃO JULGADOR: SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL – SEGUNDA TURMA

APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

RELATORA: DESEMBARGADORA INEZ MARIA BRITO SANTOS MIRANDA

 

PARECER Nº. 3948/2015

“A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.” [1]

“São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” [2]

Trata-se de uma apelação criminal interposta por (…), irresignado com a sentença condenatória proferida nos autos da ação penal nº. 0506508-96.2014.8.05.0001, que tramitou perante o Juízo de Direito da 2ª. Vara de Tóxicos de Salvador, cujo teor o condenou a uma pena de um ano e oito meses de reclusão, pela prática da conduta tipificada no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/06, bem como a uma pena de um ano de detenção, pela prática do delito previsto no art. 12 da Lei nº. 10.826/2003, em regime inicial aberto, substituídas por penas restritivas de direitos.

Oferecida defesa preliminar (fls. 43/46), foi a denúncia recebida (fls. 47). Após, procedeu-se o interrogatório (fls. 99/100), e, em seguida, a oitiva de testemunhas (fls. 101/106). Ultimada a instrução criminal e oferecidos os memoriais, do Ministério Público às fls. 120/122 e do apelante às fls. 127/132, sobreveio sentença (fls. 135/153).

Inconformado, o apelante interpôs o presente recurso (fls. 154), pleiteando, em epítome, nas razões recursais de fls. 181/188, a sua absolvição “do crime de posse de munição”.

Por sua vez, em sede de contrarrazões (fls. 191/201), o Ministério Público entendeu que a sentença não deve ser reformada, pugnando seja negado provimento ao recurso de apelação interposto, ratificando in totum a decisão condenatória do Juízo a quo.

Eis um sucinto relatório.

Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.

Compulsando os autos, afere-se que o processo deve ser nulificado a partir do recebimento da denúncia, às fls. 47, por absoluta inexistência de justa causa, nos termos do artigo 395, III, do Código de Processo Penal, porquanto a apreensão da droga e das munições supostamente encontradas na residência do apelante ocorreu de forma ilegal, conforme o teor do artigo 157, caput, do Código de Processo Penal, bem como do artigo 5º., XI e LVI, da Constituição Federal, tendo em vista que os policiais não possuíam mandado judicial autorizador da busca domiciliar, nem o consentimento do morador.

Saliente-se que não cabe a justificativa de ter o delito de tráfico de drogas natureza permanente, porquanto não desautoriza a autoridade de obter o devido mandado de busca e apreensão para ingressar no domicílio alheio, inclusive por não estar anteriormente visível as circunstâncias do flagrante, pois nada foi encontrado na revista pessoal realizada.

“Desconstruindo a afirmativa que deve ser analisada frente às narrativas comuns aos autos de prisão em flagrante por tráfico de drogas, descobre-se que, em regra, não há uma situação de flagrância comprovadamente constatada antes da invasão de domicílio, o que a torna ilegal, violadora de direito fundamental. Porém, como em um passe de mágica juridicamente insustentável, por uma convalidação judicial, a apreensão de objetos ou substâncias que sejam proibidos ou indicativos da prática de crime e a prisão daquele(s) a quem pertença(m) travestem de legalidade uma ação essencialmente – e originariamente – violadora de direito fundamental”.[3]

Com efeito, por força de dispositivo constitucional, a casa é asilo inviolável. Assim, a denúncia foi amparada em uma busca e apreensão eivada de ilicitude, pois realizada sem o devido mandado judicial, sendo, portanto, inadmissível no processo criminal. Em consonância com o art. 5º., LVI, a lei passa a considerar, no art. 157, ‘inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais‘, bem como aquelas ‘derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.’ (§ 1º.).

Neste ponto a lei tratou não somente das provas ilícitas, como também das chamadas provas ilícitas por derivação, baseadas na doutrina do fruit of the poisonous ou the tainted fruit, o que já era, na doutrina nacional, uma ideia mais ou menos pacífica.[4] Esta disposição é válida tanto em relação às provas ilícitas como às ilegítimas, para quem as diferencia.[5]

A propósito, Marco Antônio Garcia de Pinho afirma que “a questão das provas ilícitas por derivação, isto é, aquelas provas e matérias processualmente válidas, mas angariadas a partir de uma prova ilicitamente obtida é, sem dúvida, uma das mais tormentosas na doutrina e jurisprudência. Trata-se da prova que, conquanto isoladamente considerada possa ser considerada lícita, decorra de informações provenientes da prova ilícita. Nesse caso, hoje, nossos tribunais vêm tomando por base a solução da Fruits of the Poisonous Tree, adotada pela US Supreme Court. Esse entendimento, na doutrina pátria, é adotado, dentre outros autores, por Grinover e Gomes Filho. Já Avolio, também tratando com maestria sobre o assunto, concluiu não ser possível a utilização das provas ilícitas por derivação no nosso direito pátrio. Há pouco mais de dez anos, em maio de 1996, o STF confirmou sua posição quanto à inadmissibilidade das provas derivadas das ilícitas, posicionamento, hoje, ainda mais pacífico tendo à frente a ministra Ellen Gracie e os ministros como Gilmar Mendes, Peluzo e Joaquim Barbosa. A prova ilícita por derivação se trata da prova lícita em si mesma, mas cuja produção decorreu ou derivou de outra prova, tida por ilícita. Assim, a prova originária, ilícita, contamina a prova derivada, tornando-a também ilícita. É tradicional a doutrina cunhada pela Suprema Corte norte-americana dos “Frutos da Árvore Envenenada” —Fruits of the Poisonous Tree— que explica adequadamente a proibição da prova ilícita por derivação.

Esclarece este mesmo autor “que se sustenta um argumento relacional, ou seja, para se considerar uma determinada prova como fruto de uma árvore envenenada, deve-se estabelecer uma conexão entre ambos os extremos da cadeia lógica; dessa forma, deve-se esclarecer quando a primeira ilegalidade é condição sine qua non e motor da obtenção posterior das provas derivadas, que não teriam sido obtidas não fosse a existência da referida ilegalidade originária18. Estabelecida a relação, decreta-se a ilegalidade. O problema é análogo, diga-se, ao direito penal quando se discute com profundidade o tema do nexo causal. É possível que tenha havido ruptura da cadeia causal ou esta se tenha enfraquecido suficientemente em algum momento de modo a se fazer possível a admissão de determinada prova porque não alcançada pelo efeito reflexo da ilegalidade praticada originariamente.[6]

Em determinada oportunidade, decisão do Ministro Celso de Mello suspendeu, cautelarmente, processo penal em trâmite na 6ª. Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro pela suposta prática de crime contra a ordem tributária praticado por um empresário e contador português. O pedido do acusado foi feito por meio do Habeas Corpus (HC) 93050. A defesa afirma que em agosto de 1993 uma das sedes da empresa foi invadida pela Polícia Federal, e as provas obtidas pelo Ministério Público Federal foram fruto desta operação, realizada sem autorização judicial, na ausência dos sócios e sob coação de funcionários. Portanto, “provas obtidas por meios ilícitos”. Tal diligência, afirmam os advogados, transgrediu as garantias fundamentais contidas no artigo 5º. da Constituição Federal. Para o relator, ministro Celso de Mello, parte do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, questionado pela defesa, “parece demonstrar que tal decisão teria considerado válida prova qualificada pela ilicitude por derivação”. Isto porque, segundo a decisão atacada, a documentação que embasou o início da ação penal resultou de fiscalização ocorrida em outra empresa que não a do acusado.Segundo Celso de Mello, a decisão do STJ contém afirmação que conflita com a jurisprudência do Supremo sobre prova ilícita, “quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação”. Assim, o relator deferiu o pedido de medida liminar para suspender, cautelarmente, até o final do do habeas corpus, o andamento do Processo-crime nº 96.00.26361-2, que tramita na 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro/RJ. Depois, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa indeferiu liminar em Habeas Corpus (HC 92020) impetrado para suspender ação penal que tramita no Superior Tribunal de Justiça. A ação penal é derivada de inquérito iniciado no Tribunal Regional Federal da 3ª Região que, por sua vez, é decorrente de interceptação telefônica, deferida e prorrogada pelo Juízo Federal da 4ª Vara da Seção Judiciária de Alagoas. Segundo Joaquim Barbosa, a eventual nulidade de uma ou outra prova não contamina, automaticamente, aquelas que sejam produzidas posteriormente, devendo a chamada nulidade por derivação (a prova que teve como origem uma prova ilícita, também é ilícita) incidir somente sobre os elementos de convicção que sejam diretamente decorrentes da prova considerada ilícita. Fonte: STF.

No mesmo sentido: “Com efeito, acolhida a doutrina da contaminação dos frutos da árvore envenenada – fruits of the poisonous tree – necessariamente teremos de reconhecer que as provas ilícitas (inclusive por derivação) devem ser consideradas nulas, independentemente do momento em que foram produzidas” (TRF 4ª R. – 8ª T. – C 2008.04.00.006199-1 – rel. Paulo Afonso Brum Vaz – j. 02.04.2008 – DJU 16.04.2008).

Tendo o STF declarado a ilicitude de diligência de busca e apreensão que deu origem a diversas ações penais, impõe-se a extensão desta decisão a todas as ações dela derivadas, em atendimento aos princípios da isonomia e da segurança jurídica. Se todas as provas que embasaram a denúncia derivaram da documentação apreendida em diligência considerada ilegal, é de se reconhecer a imprestabilidade também destas, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada, trancando-se a ação penal assim instaurada. Ordem concedida para trancar a ação penal em questão, estendendo, assim, os efeitos da presente orda C.R.” (STJ – 6ª T. – HC 100.879 – rel.  Maria Thereza de Assis Moura j. 19.08.2008 – DJU 08.09.2008).

Segundo Luiz Flávio Gomes, “prova ilícita é a que viola regra de direito material, constitucional ou legal, no momento de sua obtenção (confissão mediante tortura, v.g.). Essa obtenção, de qualquer modo, sempre se dá fora do processo (é, portanto, sempre extraprocessual). Prova ilegítima é a que viola regra de direito processual no momento de sua obtenção em juízo (ou seja: no momento em que é produzida no processo). Exemplo: oitiva de pessoas que não podem depor, como é o caso do advogado que não pode nada informar sobre o que soube no exercício da sua profissão (art. 207, do CPP). Outro exemplo: interrogatório sem a presença de advogado; colheita de um depoimento sem advogado etc. A prova ilegíma, como se vê, é sempre intraprocessual (ou endoprocessual). O fato de uma prova violar uma regra de direito processual, portanto, nem sempre conduz ao reconhecimento de uma prova ilegítima. Por exemplo: busca e apreensão domiciliar determinada por autoridade policial (isso está vedado pela CF, art. 5.º, X, que nesse caso exige ordem judicial assim como pelo CPP -art. 240 e ss.). Como se trata de uma prova obtida fora do processo, cuida-se de prova ilícita, ainda que viole concomitantemente duas regras: uma material (constitucional) e outra processual. Conclusão: o que é decisivo para se descobrir se uma prova é ilícita ou ilegítima é o locus da sua obtenção: dentro ou fora do processo. De qualquer maneira, combinando-se o que diz a CF, art. 5.º, inc. LVI com o que ficou assentado no novo art. 157 do CPP, vê-se que umas e outras (ilícitas ou ilegítimas) passaram a ter um mesmo e único regramento jurídico: são inadmissíveis (cf. PACHECO, Denílson Feitoza, Direito processual penal, 3.ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p. 812).”

Lembra, ainda, Luiz Flávio Gomes que “dizia-se que a CF, no art. 5.º, LVI, somente seria aplicável às provas ilícitas ou ilícitas e ilegítimas ao mesmo tempo, ou seja, não se aplicaria para as provas (exclusivamente) ilegítimas. Para esta última valeria o sistema da nulidade, enquanto para as primeiras vigoraria o sistema da inadmissibilidade. Ambas as provas (ilícitas ou ilegítimas), em princípio, não valem (há exceções, como veremos), mas os sistemas seriam distintos. Essa doutrina já não pode ser acolhida (diante da nova regulamentação legal do assunto). Quando o art. 157 (do CPP) fala em violação a normas constitucionais ou legais, não distingue se a norma legal é material ou processual. Qualquer violação ao devido processo legal, em síntese, conduz à ilicitude da prova (cf. Mendes, Gilmar Ferreira et alii, Curso de Direito constitucional, São Paulo: Saraiva: 2007, p. 604-605, que sublinham: “A obtenção de provas sem a observância das garantias previstas na ordem constitucional ou em contrariedade ao disposto em normas fundamentais de procedimento configurará afronta ao princípio do devido processo legal”). Paralelamente às normas constitucionais e legais existem também as normas internacionais (previstas em tratados de direitos humanos). Por exemplo: Convenção Americana sobre Direitos Humanos. No seu art. 8.º ela cuida de uma série (enorme) de garantias. Provas colhidas com violação dessas garantias são provas que colidem com o devido processo legal. Logo, são obtidas de forma ilícita. Uma das garantias previstas no art. 8.º diz respeito à necessidade de o réu se comunicar livre e reservadamente com seu advogado. Caso essa garantia não seja observada no momento da obtenção da prova (depoimento de uma testemunha, v.g.), não há dúvida que se trata de uma prova ilícita (porque violadora de uma garantia processual prevista na citada Convenção). Não importa, como se vê, se a norma violada é constitucional ou internacional ou legal, se material ou processual: caso venha a prova a ser obtida em violação a qualquer uma dessas normas, não há como deixar de concluir pela sua ilicitude (que conduz, automaticamente, ao sistema da inadmissibilidade).[7]

Esta disposição chega a ser despicienda em razão do referido comando constitucional. É a nossa velha mania de achar que se não estiver previsto em uma lei (infraconstitucional) não está no ordenamento jurídico, ainda que esteja na Constituição Federal:“(…) Demonstrada a ilicitude da prova sob enfoque, ela deve ser desentranhada dos autos, vedando-se às partes sobre ela, se manifestarem em plenário, sob pena de exercício de influencia negativa ao Conselho de Sentença, o qual somente pode deliberar sobre provas licitamente colhidas. (…) Ordem parcialmente concedida, apenas para excluir dos autos a prova ilicitamente colhida” (STJ – 6ª T. – HC 111.972 – rel. Jane Silva – j. 18.12.2008 – DJU 02.02.2009).

Ainda sobre a questão da prova ilícita por derivação, o Ministro Celso de Mello suspendeu, em decisão liminar, o andamento da ação penal que tramitava na 8ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro, por ilicitude na obtenção das provas usadas contra a empresa. A decisão do ministro no Habeas Corpus (HC) 103325 baseia-se na tese de que se as provas são coletadas de forma ilícita, elas ficam também contaminadas de ilicitude e são invalidadas. As provas teriam sido retiradas do escritório em 1993 sem autorização judicial e através de operação policial com uso de arma de fogo. Segundo Celso de Mello, a administração estatal, embora tenha poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização tributária, não pode desrespeitar as garantias constitucionais asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes, em particular. “Ao Estado é somente lícito atuar respeitados os direitos individuais e nos termos da lei”, explicou. Ele também afirmou que “nenhum agente público, ainda que vinculado à administração tributária do Estado, poderá, contra a vontade de quem de direito, ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em espaço privado não aberto ao público, onde alguém exerce sua atividade profissional, sob pena de a prova resultante da diligência de busca e apreensão assim executada reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude material”. A jurisprudência do Supremo já é pacificada na interpretação de que a inviolabilidade da casa – prevista na Constituição Federal – estende-se aos escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita. O ministro lembrou que o próprio Supremo já trancou ações penais baseadas nessas mesmas provas.

Entendemos que o ato judicial que determina o desentranhamento das provas ilícitas tem a natureza de decisão interlocutória com força de definitiva, razão pela qual desafia o recurso de apelação (art. 593, II do Código de Processo Penal). A natureza desta decisão vem reforçada pelo § 3º. deste mesmo art. 157 (“preclusa a decisão de desentranhamento”), pois, como se sabe, a preclusão é fato processual próprio de decisões que não tratam do mérito propriamente dito. Para estas, reserva-se o efeito da coisa julgada (evidentemente que a diferença entre preclusão e coisa julgada não se resume a esta circunstância). Caso se entenda não se tratar de uma decisão com força de definitiva, e não havendo recurso previsto em lei, a solução será a utilização da correição parcial, “a quem a doutrina pátria moderna atribui natureza jurídica de recurso” e que “constitui medida judicial contra decisões ou despachos dos juízes não impugnáveis por outro recurso e que representem erro ou abuso, de que resulte a inversão tumultuária dos atos e fórmulas da ordem legal do processo.” (STJ – 6ª T. – Resp 730.079 – rel. Hamilton Carvalhido – j. 11.10.2005 – DJU 04.08.2008)[8]Evidentemente que se o desentranhamento prejudicar, ainda que remotamente e em tese, interesse da defesa, o remédio mais rápido será a utilização do habeas corpus.”[9]

Vejamos a lição de Arion Escorsin de Godoy e Domingos Barroso da Costa:

“(…) Em resumo: sem qualquer exigência ulterior de exposição de justificativas e elementos seguros em legitimar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativamente à ocorrência de tráfico de drogas, o direito à privacidade e à inviolabilidade do domicílio esvazia-se de sua condição fundamental, relativizando-se frente ao menos justificável arbítrio e ao mais leve toque de uma botina na porta. (…) Sabe-se que o flagrante autoriza a violação de domicílio, mas essa relativização do direito fundamental previsto no inc. XI do art. 5.º da Constituição não significa abertura a ações policiais que mais se assemelham a apostas lotéricas, em que o prêmio – dependente da sorte do jogador – é o encontro de indícios da prática de tráfico de drogas e a consequente prisão de quem possa ser seu autor. Desconstruindo a afirmativa que deve ser analisada frente às narrativas comuns aos autos de prisão em flagrante por tráfico de drogas, descobre-se que, em regra, não há uma situação de flagrância comprovadamente constatada antes da invasão de domicílio, o que a torna ilegal, violadora de direito fundamental. Porém, como em um passe de mágica juridicamente insustentável, por uma convalidação judicial, a apreensão de objetos ou substâncias que sejam proibidos ou indicativos da prática de crime e a prisão daquele(s) a quem pertença(m) travestem de legalidade uma ação essencialmente – e originariamente – violadora de direito fundamental. E a realidade pode ser ainda mais perversa, na medida em que se sabe que abusos policiais não são tão incomuns quanto se deseja, não sendo raros os casos de manipulação das circunstâncias, como se dá nos chamados flagrantes forjados. A intenção de incriminar alguém ou a possibilidade de sofrer as mais diversas sanções em razão do abuso na invasão de domicílio são apenas dois dos múltiplos fatores que podem determinar a produção artificial de circunstâncias que, se reais fossem, ensejariam a convalidação da ação, ante a constatação de uma situação de flagrância. Tratando-se de ação autoexecutada – sem prévio controle judicial –, nada mais simples – em termos logísticos – do que plantar papelotes, plásticos, notas de pequeno valor, aparelhos de telefonia celular e alguma quantidade de droga. E ainda que não se presuma má-fé – ou dolo –, certo é que más práticas, ainda que movidas pelas melhores intenções, estão arraigadas em nosso cotidiano – policial e mesmo judicial. E mais: até mesmo pela reiteração de seu acolhimento, nada impede que a forma que se imprime ao relato de determinadas circunstâncias na descrição do histórico dos fatos transforme em caso típico de tráfico de drogas a apreensão de cinco pedras de crack, dois aparelhos de telefonia celular e de R$ 50,00, divididos em notas de R$ 5,00 e R$ 10,00 – uma vez que havia denúncia anônima quanto à negociação de drogas no local, que era notoriamente frequentado por usuários, os quais pediram para não ser identificados por temerem represálias, mas confirmaram que o indivíduo preso no local e que tem antecedentes criminais é traficante conhecido na região. Eis a fórmula mágica para transformar abuso de poder e violação de domicílio em prisão em flagrante legal por tráfico de drogas, na clássica manobra ilusionista que, em regra, se mostra suficiente a convencer alguns magistrados – boa parte deles – de que os fins justificam os meios e que, na proteção da sociedade, deve a ação, ilegal em seu início, ser convalidada, uma vez que o tráfico de drogas é crime permanente, que muitos prejuízos traz à coletividade ordeira. Encastelados em uma realidade social privilegiada e desconhecendo o que se passa nos subúrbios – os modos de comportamento das subculturas marginais (inclusive a dos usuários de drogas), algumas rotinas de atuação policial e toda a complexidade das relações de poder que envolvem a negociação de drogas –, tais magistrados preferem acreditar na fé pública que reveste a palavra e atuação dos agentes públicos policiais a criticar a situação e perceber que qualquer pessoa pode ter consigo dois aparelhos de telefonia celular e R$ 50,00, divididos em notas de R$ 5,00 e R$ 10,00. Também fecham os olhos para o fato de que, diante das milhares de condutas incriminadas e da seletividade do sistema penal, nada mais comum que alguém em condições marginais tenha antecedentes criminais. Desconhecem, de igual modo, que cinco pedras de crack é pouca quantidade até para um usuário em sua compulsão e, para não sair da posição de conforto, sequer se perguntam acerca da real ocorrência das denúncias anônimas ou quanto à existência dos usuários não identificados que sempre confirmam a venda de drogas em imóveis invadidos pela polícia. Não podemos esquecer, ainda, que, acaso se trate de um conhecido ponto de tráfico de drogas, com intensa movimentação de usuários, onde se pratica um crime permanente, não há qualquer prejuízo em se montar campana e aguardar por algumas horas a obtenção de mandado judicial, que pode ser requerido em qualquer plantão judicial. Caminhando para o encerramento, é, portanto, fundamental salientar que o que autoriza a invasão domiciliar é tão somente a flagrância escancarada, passível de demonstração posterior. Suposições ou suspeitas, ainda que fundadas e baseadas em investigações prévias – declaradas ou ocultas –, devem ser submetidas ao prévio crivo judicial. E o fundamento é evidente: a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Afinal, como bem assentou o Desembargador Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, a “lei não permite atalhos” e, se diferente fosse, a residência não seria asilo, nem inviolável (TJRS, 70051270478, j. 13.12.2012).”[10]  (grifos nossos).

Outrossim, Pierpaolo Cruz Bottini e Ana Fernanda Ayres Dellosso lecionam com proficiência:

Como se sabe, o art. 5.º, XI, da Constituição da República, entre os direitos fundamentais, protege a casa, como asilo inviolável do indivíduo. O mesmo dispositivo estabelece exceções ao direito fundamental. Logo, por expressa previsão constitucional, as seguintes situações autorizam a violação do domicílio, sem o consentimento do morador: (I) flagrância delitiva; (II) necessidade de prestar socorro; e (III) autorização judicial. No entanto, em muitos casos, policiais adentram residências particulares, sem que presentes quaisquer destas situações excepcionais, sob o pretexto de terem obtido o consentimento do morador. (…) Frise-se a importância da discussão sobre a inviolabilidade do domicílio nessas duas situações, especialmente sob o prisma das provas ilícitas. Embora o Código de Processo Penal discipline o tema no título destinado às provas, a medida de busca e apreensão não configura propriamente meio de prova, mas meio de obtenção de prova. Mediante medidas de busca e apreensão se conservam elementos de provas, de tal forma que, se nulas as medidas, devem ser anuladas as provas obtidas por meio delas (CPP, art. 157, § 1.º). Ainda em considerações iniciais, de se ver que a busca e apreensão já inicia, em sua previsão constitucional, como medida excepcional, vale dizer, como exceção ao sistema de proteção dos direitos fundamentais, o que ganha denotada importância para interpretação e aplicação das regras processuais nos casos práticos. Posto isso, importante analisar a situação do dito “consentimento” do morador, apto a excepcionar a regra da inviolabilidade do domicílio e autorizar a busca sem mandado judicial. Sabe-se que, nas buscas domiciliares, há um conflito de interesses em jogo – a busca da verdade, para realização da justiça criminal, e a preservação da intimidade e da inviolabilidade do domicílio. O consentimento do morador aparece como primeira forma de solução desse conflito. No entanto, é preciso cautela na sua análise, sempre diante das circunstâncias de obtenção da prova e da atuação da autoridade policial. Como pontua a doutrina processual penal, durante o dia ou à noite, o morador pode permitir a entrada em sua casa e, nessa situação, dispensa-se mandado judicial para realização de busca domiciliar. O consentimento, porém, deve ser real e livre, despido de vícios como o erro, violência ou intimidação. Evidentemente que, em cada caso concreto, o consentimento do morador deve ser analisado com cautela e nunca presumido, especialmente para que se evitem abusos da autoridade policial. Sobre o cenário de muitos casos brasileiros, Cleunice Pitombo destaca: “Infelizmente, no Brasil e em outros lugares, em que o miúdo desconhece os próprios direitos, o abuso policial surge manifesto. A polícia invade casas e o morador, temeroso, tímido, não lhe coarcta o passo”. O TJRS recentemente destacou a invalidade do consentimento de pessoa investigada por tráfico de drogas. Na ocasião, o Desembargador relator pontuou: “Não existe previsão legal para a busca domiciliar a partir da permissão informal do proprietário. Do consentimento a que se refere o art. 5.º, XI, da CF não se infere que poderão ser realizadas buscas sem determinação judicial, apenas sob a anuência do morador. Se assim fosse, veríamo-nos diante de um quadro temerário, no qual os mandados de busca e apreensão seriam dispensáveis, já que polícia sempre poderia conseguir, extrajudicialmente, o “consentimento” do proprietário. Afinal, é de se ter em conta que, nas circunstâncias descritas nos autos esse aval foi dado sob constrangimento” (Ap 70058172628, Rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro, 3.ª Câmara Criminal, DJ 24.06.2014). Dessarte, se há o consentimento do morador para buscas domiciliares, algumas questões devem ser bem refletidas: (I) forma do consentimento; (II) pessoa que consente e seu grau de esclarecimento sobre as implicações da medida. Sobre a forma do consentimento, deve ser expresso e jamais presumido, sendo que não há previsão legal de forma especial. (…). No tocante à pessoa que consente, deve ser aquele titular do direito à inviolabilidade do domicílio. A doutrina destaca que a permissão deve ser do próprio sujeito da medida de busca e apreensão ou de outra pessoa que possa, legitimamente, representá-lo. Ressalvas são feitas, ainda, às habitações coletivas, em que o consentimento por um dos moradores não autoriza a busca na casa ou aposento de terceiros. No entanto, maior relevo tem a questão do grau de esclarecimento do morador que consentiu na realização da busca e apreensão. Para que se solucione o conflito de interesses – busca da verdade para realização da justiça e inviolabilidade do domicílio – por via consensual, é necessário que aquele que consente tenha pleno conhecimento das circunstâncias e consequências da realização da busca domiciliar, bem como que isso seja documentado. No ponto, não há previsão legal. Contudo, tratando-se de medida que pode implicar a produção de prova contra o próprio morador que consente com a busca, para que ele decida de forma justa e válida se franqueará a entrada em sua residência, necessário que no mínimo lhe sejam esclarecidos seus direitos e o alcance da inviolabilidade do domicílio, bem como as consequências da realização da busca domiciliar. A mesma lógica e o mesmo cuidado são observados nos procedimentos de interrogatórios, tanto judicial quanto policial, a fim de garantir o direito da pessoa de não produzir prova contra si (deriva das previsões constitucionais – art. 5.º, LVII e LXII – e consagrado do Pacto de São José da Costa Rica, art. 8.º). (…) Além disso, no ponto do consentimento, necessária observância de cuidados, a fim de assegurar que este seja consciente e válido. Frise-se que o consentimento não se presume e requer prova, cujo ônus é do Estado (TRF 2.ª Região, RSE 200551015058355, DJ 22.10.2008). Mais do que isso, parece-nos essencial que sejam esclarecidos, ao sujeito da medida e de forma documentada, os seus direitos, o alcance da inviolabilidade do domicílio e as consequências de sua decisão por franquear a entrada de policiais para a busca domiciliar. Trata-se de medidas mínimas para coibir abusos da autoridade policial e fazer valer um Estado Democrático de Direito.[11] (grifos nossos).

Nada obstante, em que pese a flagrante nulidade em razão da busca e apreensão da droga e das munições supostamente encontradas na residência do apelante ter sido realizada sem o consentimento do morador, nem, tampouco, de mandado judicial, torna-se imperioso consignar a existência de outra nulidade que se depreende do termo de audiência de fls. 98, haja vista que o interrogatório do apelante (fls. 99/100) ocorreu antes da oitiva das testemunhas arroladas pela acusação, porquanto somente admitimos a realização do interrogatório ao final da instrução criminal, de acordo com a reforma processual de 2008, tendo em vista, inclusive, decisões do Pretório Excelso concernentes à observância da regra insculpida no Código de Processo Penal, raciocínio perfeitamente aplicável, também, ao procedimento da Lei                               nº. 11.343/06 (Lei de Drogas), a fim de assegurar o respeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

A propósito, em decisão proferida no dia 12 de fevereiro de 2015, a Ministra Rosa Weber deferiu liminar no Habeas Corpus nº. 126080 para suspender, até o julgamento de mérito deste processo, acórdão do Superior Tribunal Militar que confirmou decisão da instância anterior determinando a condenação de um soldado pela prática do crime de falsificação de documento, tipificado no artigo 311 do Código Penal Militar, destacando que o posicionamento consolidado da Primeira Turma vai em sentido contrário ao que decidiu o Superior Tribunal Militar. Citando diversos precedentes da Turma, a Ministra salientou que a não realização do interrogatório no final da instrução retira do réu a possibilidade de manifestar-se pessoalmente sobre provas acusatórias em seu desfavor e de influir na formação do convencimento do julgador. “Em análise de cognição sumária, reputo que as razões colacionadas na inicial, no que diz respeito à realização do interrogatório no início da instrução, mostram-se relevantes, justificando a concessão do provimento liminar. Isso porque o acórdão hostilizado, nesse ponto, como visto, diverge frontalmente dos precedentes da Primeira Turma deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a não observância do artigo 400 do Código de Processo Penal nos processos militares configura nulidade absoluta por violar garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa”, observou a Ministra ao deferir a liminar (grifo nosso).

Vejamos trecho da aludida decisão:

“(…) A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a realização do interrogatório ao final da instrução criminal, prevista no art. 400 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 11.719/2008, também se aplica às ações penais em trâmite na Justiça Militar, em detrimento do art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. Precedentes.  A não realização do interrogatório ao final da instrução subtraiu ao réu a possibilidade de se manifestar pessoalmente sobre a prova acusatória coligida em seu desfavor e de, no exercício do direito de audiência, influir na formação do convencimento do julgador. Prejuízo evidente. Nulidade absoluta configurada. (…) reputo que as razões colacionadas na inicial, no que diz respeito à realização do interrogatório no início da instrução, mostram-se relevantes, justificando a concessão do provimento liminar. Isso porque o acórdão hostilizado, nesse ponto, como visto, diverge frontalmente dos precedentes da 1ª Turma deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a não observância do art. 400 do Código de Processo Penal nos processos militares configura nulidade absoluta por violar garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Desse modo, presente o requisito do fumus boni iuris para a concessão da tutela pleiteada, defiro o pedido de liminar para suspender os efeitos do acórdão prolatado pela Corte Castrense (48-36.2013.7.09.0009/MS) até o julgamento final deste writ. Estando os autos devidamente instruídos, vista ao Ministério Público Federal para manifestação. Publique-se. Brasília, 12 de fevereiro de 2015. Ministra Rosa Weber Relatora”. (HC 126080, Relator(a): Min. ROSA WEBER, julgado em 12/02/2015, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 13/02/2015 PUBLIC 18/02/2015) (grifos nossos).

Em sessão plenária, os Ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram aplicar a nova regra do Código de Processo Penal, modificada pela Lei 11.719/08, que alterou o momento de realização do interrogatório dos acusados para o fim da fase de instrução criminal. Por unanimidade dos votos, eles negaram provimento a um agravo regimental interposto pelo Ministério Público Federal na Ação Penal (AP) 528. No recurso, sustentava-se que os argumentos da norma especial – Lei nº. 8.038/90, que mantém o sistema tradicional – prevaleciam sobre a geral, que coloca o interrogatório do réu ao final da instrução. De acordo com o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, o Plenário do Supremo já havia iniciado a discussão se a mudança legislativa do CPP afetava ou não a Lei nº. 8038/90, mas ainda não havia conclusão do debate. O Supremo sinalizou que o interrogatório é um instrumento de defesa do réu e, portanto, deve ser colocado ao final. Assim, em vista da previsão da Lei nº. 11.719/08 que modificou o artigo 400 do CPP e transferiu o interrogatório para o final do processo, Lewandowski  despachou na AP 528 no sentido de que os réus sejam interrogados ao final do processo, considerando a nova sistemática mais favorável a defesa. “Não se pode negar que se trata de um tema de altíssima relevância dado o reflexo que a referida inovação legal exerce sobre o direito constitucional, a ampla defesa, embora não tenha tido ainda o Supremo Tribunal Federal a oportunidade de posicionar-se definitivamente a respeito dele, nem mesmo em sede de questão de ordem”, avaliou o Ministro Ricardo Lewandowski. Ele lembrou que o tema chegou a ser debatido pelos Ministros anteriormente, em uma questão de ordem suscitada na AP 470, contudo, como naquela ação penal o interrogatório já havia sido realizado, a discussão não prosseguiu. Para o relator, “parece-me relevante constatar que se a nova redação do artigo 400, do CPP, possibilita ao réu exercer de modo mais eficaz a sua defesa, tal dispositivo legal deve suplantar o estatuído no artigo 7º, da Lei 8038, em homenagem aos princípios constitucionais que são aplicáveis à espécie”, afirmou. Segundo ele, é mais benéfico à defesa possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, depois de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a produção de outras provas como eventuais perícias. Nesse caso, conforme o relator, o acusado terá a oportunidade de esclarecer divergências “que não raramente afloram durante a edificação do conjunto probatório”. Quanto à discussão sobre o aspecto formal, o Ministro entendeu que o fato de a Lei nº. 8038/90 ser norma especial em relação ao CPP, “em nada influencia o que até aqui se assentou”. “É que, a meu sentir, a norma especial prevalece sobre a geral apenas nas hipóteses em que estiver presente alguma incompatibilidade manifesta insuperável entre elas, nos demais casos, considerando a sempre necessária aplicação sistemática do direito, cumpre cuidar para que essas normas aparentemente antagônicas convivam harmonicamente”. Dessa forma, o relator negou provimento ao agravo regimental, entendendo que o interrogatório deve ocorrer no final do processo.

Entendemos acertada e importante esta decisão do Supremo Tribunal Federal, assentando que a modificação no procedimento comum quanto ao momento da realização do interrogatório também se aplica aos procedimentos especiais, inclusive, por força de raciocínio, à Lei de Drogas (Lei nº. 11.343/06).

Como se sabe, a Lei nº. 11.719/08 alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relativos à suspensão do processo, emendatio libellimutatio libelli e aos procedimentos, passando o interrogatório do acusado a ser o último ato processual da audiência de instrução e julgamento, o que veio a fortalecer a ideia de considerá-lo, além de mais um meio de prova, um autêntico e importante meio de defesa.

Já havia entendimento doutrinário segundo o qual em todos os procedimentos penais, inclusive na Lei de Drogas, deveria ser o interrogatório feito por último, em razão do disposto no art. 400 do CPP. 

Neste sentido, Reinaldo Daniel Moreira, Boletim do IBCCrim, nº. 194, p. 15 (“A reforma do Código de Processo Penal e a dimensão político-criminal do interrogatório no processo penal”):

“(…) É certo que ainda se encontram em vigor procedimentos em que, destoando de tal sistemática, o interrogatório se situa no início da instrução. É o caso, por exemplo, da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que, apesar de relativamente recente, no seu artigo 57 estruturou seu procedimento nos moldes de outrora, com o interrogatório inaugurando a instrução oral. Nada mais fez do que seguir o modelo que dominava quando de sua entrada em vigor. O mesmo ocorre, ainda exemplificativamente, no procedimento criminal previsto na Lei de Imprensa e também no procedimento criminal disciplinado no Código Eleitoral, em que, até dezembro de 2003, sequer havia a previsão de interrogatório. Nos delitos de competência originária dos tribunais, igualmente, o interrogatório é no início do processo, nos termos da Lei 8.038/90. Espera-se que, em homenagem à ampla defesa e seu significado político-criminal em um Estado Democrático de Direito, no futuro torne-se imperativa, para todos os procedimentos, a instalação do interrogatório no encerramento da instrução. Contudo, uma questão que pode suscitar controvérsias é se, mesmo no caso de procedimentos em que hoje se tem a previsão legal do interrogatório no início da instrução, como no caso da Lei 11.343/2006, poderia o juiz proceder ao interrogatório no final da audiência. A princípio, nada impede, mas ao contrário, até parece conveniente, que nestes casos também o magistrado, ainda que em interpretação contra legem, possa interrogar o acusado no final instrução. Afinal, assim estará homenageando o ditame constitucional da ampla defesa, além de estar afinado à nova percepção do legislador acerca do locus adequado do interrogatório em uma estrutura procedimental comprometida com a reafirmação dos valores constitucionais. Contudo, não faltariam aqueles que, em nome da observância do procedimento firmado em lei, questionariam a medida.”

Pois bem.

Como afirma a doutrina, com a reforma, “o interrogatório e, por conseguinte, a autodefesa, ganharam ainda mais importância, principalmente porque aquele ato passou a ocupar o derradeiro momento da persecução penal, permitindo, assim, ao réu, apresentar a sua versão dos fatos após ter tido contato pessoal com todas as demais provas produzidas, principalmente as orais. Trata-se, como se percebe, de importante inovação, que confere ao acusado uma maior possibilidade de defender-se, até porque, como se sabe, talvez em razão da falta de investimentos ou, até mesmo, de cultura em investigação, quase sempre os processos criminais são decididos com base nas provas testemunhais colhidas. No entanto, obviamente, para que o réu possa desempenhar sua autodefesa de maneira ampla, é essencial que ele esteja pessoalmente presente durante a realização da audiência de instrução e julgamento e, também, a da tomada de todos os testemunhos que ocorram fora desta. Tal afirmação já era válida na sistemática anterior, com fundamento na CF e, até mesmo, na Lei Adjetiva vigente, mas tornou-se inquestionável doravante, tendo em vista a supramencionada alteração na ordem da colheita das provas e, bem assim, o entendimento do STF quanto à hierarquia dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Quanto a este último aspecto, cumpre destacar que o Brasil é signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, aprovado pelo Dec. Leg. nº 266/1991 e promulgado pelo Dec. nº 592/92, o qual expressamente prevê, como direitos de todos os que sejam acusados criminalmente, “de estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente” (art. 14, 3, d).”[12]

Assim, “na lei nova prevalece outra orientação: o interrogatório é o momento mais importante da auto-defesa; é a ocasião em que o acusado pode fornecer ao juiz sua versão pessoal sobre os fatos e sua realização após a colheita da prova permitirá, sem dúvida, um exercício mais completo do direito de defesa, inclusive pela faculdade de permanecer em silêncio (art. 5º., LVIII, CF).”[13]

A propósito, vejamos este julgado:

O interrogatório do acusado somente após a ouvida das testemunhas de acusação e defesa resulta de inovação processual penal que não pode ceder, sobretudo quando aqueles residem exclusive ou predominantemente fora do distrito de culpa. Entendimento diverso, sem observância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, implica em indesejável violação das garantias constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal.” (TJMT – 1ª C. Bem. Decl. 119968/09 – rel. Paulo Inácio Dias Lessa – j. 27.10.2009).

Hoje, mais do que antes, se aceita a idéia de que o interrogatório se trata de um meio de defesa, sendo esta a posição adotada por doutrinadores do porte de Tourinho Filho, Bento de Faria e Jorge Alberto Romeiro, dentre outros. Frederico Marques, por sua vez, defendia o contrário.

Tornaghi, identificando o problema como uma questão de “política processual” afirmava que o interrogatório “tanto pode ser aproveitado pela lei para servir como método de prova quanto como instrumento de defesa”, sendo, portanto, “meio de prova quando a lei o considera fato probante (factum probans) e é meio de defesa e fonte de prova quando ela entende que ele por si nada prova, mas apenas faz referência ao fato probando e, por isso mesmo, é preciso ir buscar a prova de tudo quanto nele foi dito pelo réu”.[14]

O Código de Processo Penal italiano, nos seus arts. 64 e 65, deixa claro a intenção do legislador italiano em considerar o interrogatório como meio de defesa, pois, salvo em caso de prisão cautelar, “la persona sottoposta alle indagini (…) interviene libera all’interrogatorio”. Ademais, antes de iniciar o interrogatório, o imputado será advertido de seu direito “di non rispondere”, excetuando-se os dados de mera identificação, devendo a autoridade judicial informar ao interrogado a respeito dos elementos de prova que pesam sobre ele, bem como as respectivas fontes, salvo “se non puó derivarne pregiudizio per le indagini”; em seguida o Juiz, “invita la persona ad esporre quanto ritiene utile per la sua difesa e le pone direttamente domande” (grifo nosso).

Para nós é induvidoso o caráter de meio defensivo que possui o interrogatório, nada obstante entendermos, com Tornaghi, que se trata também, a depender do depoimento prestado, de uma fonte de prova e de um meio de prova.

O princípio da ampla defesa insculpido no art. 5º., LV da Constituição Federal engloba não somente a defesa técnica, a cargo de um profissional do Direito devidamente habilitado (art. 261, parágrafo único, CPP), como também a denominada autodefesa ou defesa pessoal, esta exercida pelo próprio acusado quando, por exemplo, depõe pessoal e livremente no interrogatório.

Veja-se a respeito a lição de Germano Marques da Silva:

A lei, com efeito, reserva ao arguido, para por ele serem exercidos pessoalmente, certos actos de defesa. É o que acontece, nomeadamente, com o seu interrogatório, quando detido, quer se trate do primeiro interrogatório judicial, quer de interrogado por parte do MP, do direito de ser interrogado na fase da instrução, das declarações sobre os factos da acusação no decurso da audiência e depois de findas as alegações e antes de encerrada a audiência”.[15]

Ora, tratando-se como efetivamente se trata de um modo de defesa pessoal é evidente que o interrogatório não pode ser considerado, tão-somente, como meio de prova, nada obstante estar disciplinado no Capítulo III, do Título VII do Código de Processo Penal. Não esqueçamos que o interrogado tem direito a se calar, na forma do art. 5º., LXIII da Constituição Federal, atentando-se que o seu silêncio não pode lhe causar qualquer ônus processual ou mácula à sua presumida inocência. Neste sentido, veja-se o parágrafo único do art. 186, segundo o qual “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.” Se o silêncio está entre os direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente, inconcebível que o seu uso possa trazer qualquer tipo de prejuízo para quem o utilize.

O interrogado tem também o direito indiscutível de não se autoincriminar e o de não fazer prova contra si mesmo, em conformidade com o art. 8º., 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, g do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, assinada em 19 de dezembro de 1966, ambos já incorporados em nosso ordenamento jurídico, por força, respectivamente, do Decreto n.º 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992. Já em 1960, Serrano Alves escrevia uma monografia com o título “O Direito de Calar” (Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1960), cuja dedicatória era “aos que ainda insistem na violação de uma das mais belas conquistas do homem: o direito de não se incriminar”. Na sua introdução, o autor afirma: “Este livro é uma calorosa mensagem de esperança dirigida aos mártires da truculência policial e do exagerado arbítrio judicial.” Nesta obra, advertia o autor que “há no homem um território indevassável que se chama consciência. Desta, só ele, apenas ele pode dispor. Sua invasão, portanto, ainda que pela autoridade constituída, seja a que pretexto for e por que processo for, é sempre atentado, é sempre ignomínia, é torpe sacrilégio.” (p. 151).”[16]

Este entendimento prevalece, inclusive, quando se trata de processo na Justiça Militar. Neste sentido, a Ministra Carmen Lúcia deferiu pedido de liminar no Habeas Corpus nº. 122673 para suspender o curso de ação penal que tramita na Justiça Militar contra um soldado acusado de furto. Em exame preliminar, a Ministra ponderou que os elementos dos autos são suficientes para demonstrar plausibilidade do direito alegado, porque a decisão do Superior Tribunal Militar de indeferir o requerimento de realização de interrogatório ao final da instrução, diverge da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Destacou também a existência do perigo da demora, pois havia audiências designadas. “No ponto, a decisão do Superior Tribunal Militar, pela qual foi indeferido pedido de realização de interrogatório do paciente ao final da instrução, parece destoar do entendimento neste Supremo Tribunal“, afirmou a Ministra, ressaltando a aplicação do artigo 400 do Código de Processo Penal, alterado pela Lei 11.719/2008, aos delitos disciplinados pela legislação especial.[17]

Adepto desta tese, e para finalizar o assunto, Ferrajoli entende que o interrogatório é o melhor paradigma de distinção entre o sistema inquisitivo e o acusatório, pois naquele o interrogatório representava “el comienzo de la guerra forense”, “el primer ataque del fiscal contra el reo para obtener de él, por cualquier medio, la confesión”. Contrariamente, continua o filósofo italiano, no processo acusatório/garantista ‘informado por la presunción de inocencia, el interrogatorio es el principal medio de defensa y tiene la única función de dar materialmente vida al juicio contradictorio y permitir al imputado refutar la acusación o aducir argumentos para justificarse’.[18]

No mesmo sentido, o Ministro Celso de Mello suspendeu, liminarmente, o curso da ação penal contra quatro pessoas acusadas de suposta falsidade ideológica e inscrição fraudulenta de eleitor praticadas na zona eleitoral de Viradouro (SP). A cautelar foi concedida no Habeas Corpus(HC) 107795, de relatoria do Ministro, que decidiu suspender a ação penal e a eventual sentença condenatória, caso esta já tivesse sido proferida, até o julgamento final do Habeas Corpus pelo Supremo.Para o ministro Celso de Mello, a instrução processual feita pelo juízo da 203ª Zona Eleitoral de Viradouro feriu o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, uma vez que tomou como base os procedimentos previstos no Código Eleitoral, em detrimento daqueles presentes na nova redação dada ao Código de Processo Penal, este último mais favorável ao réu. Isso porque, ao receber a denúncia contra os acusados de crime eleitoral, o juízo de primeiro grau determinou a expedição de cartas precatórias para citação e realização dos interrogatórios, conforme o previsto no Código Eleitoral (artigo 359).No entanto, conforme ressaltou o ministro Celso de Mello em sua decisão, a nova redação conferida pela Lei 11.719/2008 aos artigos 396 e 396-A do Código do Processo Penal  configura-se mais benéfica aos réus, uma vez que instituiu a fase preliminar ao interrogatório, conferindo ao acusado a possibilidade de apresentar por escrito um contraditório prévio, em que pode invocar todas as razões de defesa, de natureza formal ou material, assim como produzir documentos, especificar provas e propor testemunhas. “A nova ordem ritual definida nos artigos 396 e 396-A do Código do Processo Penal, na redação dada pela Lei 11.719/2008, revela-se evidentemente mais favorável que a disciplina procedimental resultante do próprio Código Eleitoral”, ressalta o Ministro. Segundo ele, a própria Suprema Corte, em sucessivas decisões, já reconheceu que a inobservância do “contraditório prévio” previsto no novo Código do Processo Penal constitui causa de nulidade processual absoluta. O relator acrescentou ainda que o interrogatório, de acordo com a nova redação dada ao artigo 400 do Código do Processo Penal, passou a ser o último ato da fase de instrução probatória de um processo penal.

Augusto Tarradt Vilela, no Boletim nº. 261, do INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (Agosto/2014), no artigo intitulado “O (problemático) procedimento especial da Lei de Drogas e o interrogatório do réu“, concluiu: “A discussão quanto ao ser possível aplicar o rito ordinário ao delito de tráfico de drogas, dessarte, não deve permanecer estagnada e dúbia, porquanto o reconhecimento de que seu caráter benéfico prepondera ao do trazido pela Lei 11.343/2006 é patente, não podendo haver a possibilidade de permanecerem entendimentos que afastem os direitos intrínsecos ao cidadão, os direitos da ampla defesa e contraditório, direitos e princípios por deveras resguardados em um Estado Democrático de Direito, no qual quem tem o poder é o povo (!!!), e não o Estado-punidor. Com o claro conhecimento da realidade processual penal, a aplicação de uma norma rígida, sem qualquer motivação nos fundamentos do direito processual e material penal, como é o caso do trazido pelo art. 57 da Lei 11.343/2006, não pode ser tomado como absoluto por convicções meramente formalistas. A ultima ratio vai além da concepção da forma e de entendimentos positivados, porquanto se está a utilizar, como já referido, da última ação do Estado quanto ao caso e do fornecimento de todos os direitos preconizados e escudados pela Constituição Federativa do Brasil, devendo-se, sempre, alcançar o direito ao cidadão e afastar-se o monopólio do poder das mãos do Estado que acaba, quando age dessa forma, buscando tão somente uma punição, esquecendo-se do julgamento.”

No mesmo sentido, a Ministra Carmen Lúcia deferiu pedido de liminar no Habeas Corpus nº. 123228, impetrado pela Defensoria Pública da União contra decisão do Superior Tribunal Militar que manteve a condenação de W.C.S. e G.A.J. pelo crime de concussão. Em análise preliminar do caso, a relatora destacou a plausibilidade jurídica dos argumentos expostos, uma vez que “a decisão do Superior Tribunal Militar, indeferindo o requerimento de interrogatório dos réus ao final da instrução, parece destoar do entendimento deste Supremo Tribunal, no sentido da aplicação do artigo 400, do CPP, alterado pela Lei 11.719/2008, aos delitos disciplinados pela legislação especial”. A Ministra afirmou, ainda, que a aplicação do dispositivo do Código de Processo Penal no processo penal militar prestigia a efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, do devido processo legal e do Estado Democrático de Direito.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu, em sessão extraordinária, o Habeas Corpus 121907, impetrado pela Defensoria Pública da União, para anular o processo em trâmite na Justiça Militar, a partir da decisão condenatória, em que o soldado do Exército F.C.S. é acusado de roubar dois fuzis do Comando de Fronteira Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), determinando que ele seja submetido a novo interrogatório. Em fevereiro de 2013, a 12ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM), de Manaus, condenou o soldado à pena de cinco anos, nove meses e três dias de reclusão, pelo delito de peculato-furto, com aplicação da pena acessória de exclusão das Forças Armadas. O Superior Tribunal Militar negou apelação da defesa. No entanto, o juízo da Auditoria da 12ª CJM julgou extinta a punibilidade, por indulto, com base no artigo 1º, inciso I, do Decreto 8.172/2013, e o acusado foi solto. No Habeas Corpus 121907, a DPU sustentou que a ação penal contra o soldado é nula, pois foi negada a ele a realização de interrogatório na última fase da instrução processual, como dispõe a Lei 11.719/2008. Alegou ainda que o acusado não estava presente na inquirição de testemunhas de defesa. O relator, Ministro Dias Toffoli, acolheu a tese de que o soldado deveria ter sido interrogado ao final da instrução. “O prejuízo à defesa foi evidente. A não realização do interrogatório subtraiu a possibilidade de o impetrante manifestar-se pessoalmente contra a prova acusatória em seu desfavor e, no exercício do direito de audiência, de influir na formação do convencimento do julgador”, apontou, lembrando que a Primeira Turma do STF firmou entendimento no sentido de que a realização de interrogatório ao final de instrução criminal se aplica às ações penais em trâmite na Justiça Militar.[19]

Em arremate, imperioso salientar a decisão, acertada e digna de encômios, do Juiz de Direito de Mundo Novo Dr. Leonardo Carvalho Tenório de Albuquerque, nos autos da ação penal nº. 0000342-74.2014.8.05.0173, cópia anexa, determinando a realização do interrogatório no final da instrução criminal, em consonância com o entendimento acima explanado, “por se tratar de regra mais benéfica ao réu”.

Ante o exposto, reiteramos que todos os atos processuais devem ser nulificados a partir das fls. 47 (inclusive) dos autos, nos termos dos artigos 157, caput, e 573, § 1º. (fruits of the poisonous tree), c/c 395, III, todos do Código de Processo Penal, restando prejudicada a análise das demais alegações da defesa, ou, subsidiariamente, a partir das fls. 98, conforme expendido acima.

Outrossim, requeremos que cópia dos autos seja enviada à Corregedoria da Polícia Civil e ao Grupo de Atuação Especial para o Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público do Estado da Bahia (GACEP), a fim que se apure suposta prática do crime de abuso de autoridade ocorrido quando da invasão ilícita do acima referido asilo inviolável.

Por fim,  prequestionamos, para efeito de recurso especial e extraordinário, o art. 57 da Lei nº. 11.343/06, os artigos 157, caput, 395, III, 400, caput, e 573, § 1º., todos do Código de Processo Penal, além do artigo 5º., incisos XI, LIV, LV e LVI, da Constituição Federal.

Salvador, 14 de maio de 2015.

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

Procurador de Justiça

[1] Art. 5º., XI, da Constituição Federal.

[2] Art. 5º., LVI, da Constituição Federal.

[3] Godoy, Arion Escorsin de; Costa, Domingos Barroso da.Desconstruindo mitos: sobre os abusos nas buscas domiciliares ao pretexto de apuração do delito de tráfico de droga.http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigos/288-247—junho-2013. Acesso em 18 de julho de 2014.

[4] A respeito confira-se a obra de Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini, Interceptação Telefônica, São Paulo: RT, 1997.

[5] Ada, Scarance e Magalhães Gomes, por exemplo, esclarecem que “quando a proibição for colocada por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilicitamente obtida.” (As Nulidades no Processo Penal, São Paulo: Malheiros, 5ª. ed., 1996, p. 116).

[6] “Breve ensaio das provas ilícitas e ilegítimas no direito processual penal”, http://ultimainstancia.uol.com.br/ensaios/ler_noticia.php?idNoticia=34917

[7] “Lei 11.690/2008 e provas ilícitas: conceito e inadmissibilidade”, www.paranaonline.com.br, 22/06/2008.

[8] Sobre mandado de segurança em matéria criminal, veja-se o nosso Direito Processual Penal, Salvador: JusPodivm, 2008.

[9] MOREIRA, Rômulo de AndradeA Reforma do Código de Processo Penal – Provas (Disponível em: <http://romulomoreira.jusbrasil.com.br>. Acesso em: 30 out. 2014.)

[10] Desconstruindo mitos: sobre os abusos nas buscas domiciliares ao pretexto de apuração do delito de tráfico de droga. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigos/288-247—junho-2013. Acesso em 18 de julho de 2014.

[11] O consentimento e a situação de flagrante delito nas buscas domiciliareshttp://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5199-O-consentimento-e-a-situação-de-flagrante-delito-nas-buscas-domiciliares. Acesso em 29 de novembro de 2014.

[12] Pupo, Matheus Silveira. Uma nova leitura da autodefesa. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 14-15, mar. 2009.

[13] Ada Pellegrini Grinover e outros, Juizados Especiais Criminais, São Paulo: RT, 3ª. ed., 1999, p. 176.

[14] Hélio Tornaghi, ob. cit. p. 810.

[15] Curso de Processo Penal, 3ª. ed., Lisboa: Verbo, vol. I, p. 288.

[16] Sobre o tema, leia-se: “O Dever de Calar e o Direito de Falar”, texto de Adauto Suannes, publicado na Revista Literária de Direito, abril/maio de 2001, além do trabalho de Miguel Reale Júnior e Heloísa Estellita, “Contribuinte não precisa prestar informações que possam lhe prejudicar”, publicado no site www.migalhas.com.br, informativo nº. 671 (07 de maio de 2003).

[17] MOREIRA, Rômulo de Andrade. O Supremo Tribunal Federal e o Interrogatório nos Procedimentos Especiais.   InRepertório de Jurisprudência IOB, nº 19/2013 (outubro), Vol. III, p. 91.

[18] Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, 3ª. ed., Madrid: Trotta, 1998, p. 607.

[19] MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Lei de Drogas – Aspectos Procedimentais. (Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/romulomoreira>. Acesso em: 20 set. 2014

Fonte: Empório do Direito 

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