Passou quase em branco, dias atrás, notícia de que o Ministério Público do Estado de São Paulo, por ato do procurador-geral de Justiça, instituiu convênio com a Polícia Militar, no sentido de assessoramento em atribuições não especificadas ao público em geral e aos juristas em particular. Sabe-se muito bem – e sempre se soube – que a Polícia Militar, no contexto e em emergência, atua como reserva das Forças Armadas. O enlace entre o Ministério Público e tal órgão se faz, obviamente, para facilitar as investigações criminais que a instituição citada exerce e pretende exercer no futuro, aproveitando a zona grigia deixada pelo Supremo Tribunal Federal, incapaz, ou prudente, na definição dos poderes e proibições concernentes ao tema.
No meio disso tudo, os gabinetes dos tribunais estaduais, federais e da própria Suprema Corte se preenchem com procedimentos em que há conflito sério quanto à extensão e legitimidade de tais interpenetrações num campo que, legalmente, pertence à Polícia Judiciária. Vez ou outra, um segmento mais arrojado de um ou outro tribunal censura a agressividade com que os persecutores vêm tomando da Polícia Civil empreendimentos investigatórios múltiplos, num bailado que às vezes assume forma sinistra, pois, de um lado, a Instituição perseguidora veste a roupagem dos soldados e, de outro lado, a Polícia Judiciária se amesquinha, porque refugada pela primeira.
Anos atrás, no Habeas Corpus número 990.08.078800-0, de São Paulo, houve demonstração, sem mínima possibilidade de contestação, de que o Ministério Público do Estado de São Paulo se valia de policiais militares para tarefas de controle e investigação de condutas aparentemente delituosas, violando, inclusive, parlatórios de presídios em que advogados e presos mantinham diálogos sigilosos. Naquela oportunidade, houve demonstração absoluta de que o Ministério Público estipendiava policiais militares para tal fim. O assunto caiu no vazio, carregando o então procurador-geral de Justiça, Rodrigo Pinho, para casa, os rescaldos da disputa.
Agora, as portas são abertas às escâncaras. A digníssima Instituição do Ministério Público deixa entrever que deu os braços à Polícia Militar do Estado de São Paulo, tornando-a, então, a longa manus de que os promotores públicos eram antes privados. Não se sabe em que particularidade há a concretização desse intento. Ignora-se, também, se a notícia de existência, em Presidente Prudente, de um grupo constituído por 40 ou mais policiais militares, destinando-se a tarefas atinentes a interceptações telefônicas, faz ou não parte desse convênio. Entretanto, exame perfunctório da Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo demonstra que o auxílio da PM ao Ministério Público não se encaixa em qualquer dos permissivos postos na legislação referida, ou mesmo na Constituição Estadual.
Paralelamente, há novidade, demonstrando o procurador-geral de Justiça de São Paulo uma rude iniciativa no sentido de assumir agressivamente o ponteamento da investigação criminal no estado. Já se pôde verificar um silêncio contrito dos órgãos corresponsáveis pela administração da justiça paulista, seja o Poder Judiciário em si seja a própria Ordem dos Advogados, exceção feita a uma direta, isolada e determinada iniciativa assumida pelo conselheiro federal Guilherme Batochio, enquanto provocava o Conselho Nacional do Ministério Público a apurar quais e quantos segmentos daquela Instituição estavam a beliscar, por meio de espiolhadores eletrônicos, as intimidades da cidadania.
A discrição existente constitui fenômeno ainda não estudado pelos intérpretes, pois não se dirá que o assunto não foi devidamente divulgado no sistema federativo. Este subscritor, trinta dias passados, provocou oficialmente o presidente da Secção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, dando-lhe informes adequados a que se fizesse atuar a chamada “lei da transparência”. Ao mesmo tempo, o presidente da Comissão de Prerrogativas da mesma Seccional, mais todos os conselheiros, foram cientificados da iniciativa. Isso não bastou: os duzentos e quarenta e poucos presidentes das subseções paulistas da Ordem dos Advogados receberam comunicado expresso sobre a necessidade de atuação no sentido de se verificar, verdadeiramente, a profundidade e dimensão da experiência novidadeira referida. Vale dizer, ainda, que os 27 presidentes das Secções da Corporação dos advogados foram, assemelhadamente, notificados quanto ao ponto nodal da questão. Faz, já, repita-se, um mês que isso aconteceu. O silêncio, ressalvada a atitude de Guilherme Batochio, anterior, aliás, ao comportamento do infra-assinado, é pleno. Há duas alternativas: ou a Ordem dos Advogados, conforme a tradição, reage vagarosamente, ou os profissionais do direito já se agasalharam na conformação. Não há terceira hipótese.
No fim das contas, o Brasil tem, atualmente, oitocentos mil inscritos, todos esperando o aparecimento de uma espécie de Messias ou, quiçá, desesperançados de que tal ocorra. Tocante ao tema, o subscritor não é mártir, não é líder e, bem medidas as provocações, já deu à OAB cinquenta e quatro anos de sua vida. Espera-se o aparecimento de alguém, ou de alguns, a atassalhar o problema. Ou não.
Vale o escrito, a título de encerramento, a servir, quem sabe, como estimulador de comportamentos mais ágeis dos nossos escolhidos. As ligações entre o Ministério Público e a Polícia Militar, até época recente, se faziam na discrição das portas entreabertas. Agora são expostas popularmente, como desafio. De outra parte, é preciso mostrar, também transparentemente, o que existe nos subterrâneos da Instituição a título de espionagem sofisticada. Existe lei respeitante ao tema. Escrúpulos, pudores ou elegantes circunlóquios não seriam, frente à enormidade da desestabilização da atividade persecutória, a melhor conduta a seguir. Por fim, é muito bom deixar assentado que a ponta de lança do estímulo ao esclarecimento dos negrores existentes está lá atrás, ao tempo em que o ex-procurador geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho, mandou pagar policiais militares para a tarefa assumida, no momento entrante, sem tergiversações ou tremores. Ver-se-á.
Paulo Sérgio Leite Fernandes é advogado criminalista em São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 3 de setembro de 2013
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