Transtornos psiquiátricos afastam quatro PMs por dia em São Paulo
Transtornos psiquiátricos foram responsáveis por 14.756 afastamentos de policiais militares entre 2005 e 2014 no Estado. Os números obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que, durante esses 10 anos, quatro PMs receberam autorização diariamente, em média, para se tratar fora do serviço.
Segundo especialistas e PMs da ativa e da reserva, o número de policiais afetados por problemas mentais pode ser bem maior do que o de afastamentos concedidos. Eles dizem que o preconceito e a dificuldade em obter autorização para se tratar estão entre os obstáculos, diante de uma corporação que tem um efetivo reduzido.
Especialista em segurança pública, o tenente-coronel da reserva Adilson Paes de Souza afirma que os dados são preocupantes, mas que existem inúmeros policiais que, em um primeiro momento, não são diagnosticados com transtorno mental. "Não existe uma estrutura adequada e suficiente a ponto de, preventivamente, tirá-lo da rua", diz. Souza afirma também que muitos PMs não procuram ajuda. "É o mito do machão, do herói. O medo de sofrer chacota, de demonstrar fraqueza, e de enfrentar a insensibilidade dos superiores", afirma.
Presidente da Appmaresp (Associação das Praças Policiais Militares da Ativa e Reformados), o cabo Marco Ferreira diz que, em geral, não há ajuda para conseguir afastamento. "Quem determina isso na prática são os comandantes, independente do critério médico", diz. "Você é adestrado em um regime onde não pode ser fraco e o dano psicológico é visto como fraqueza. Se precisa de ajuda, é visto como fraco ou é vagabundo"
"Um PM assim não pode atender a população. Isso tem causado muitos suicídios. Morrem mais policiais em suicídios do que em serviço, fardados. Que temos conhecimento, foram oito só neste ano", diz Adriana Borgo, presidente da Afapesp (Associação de Familiares e Amigos de Policiais).
'VOCÊ GRITA E NINGUÉM OUVE'
Misto de depressão e ansiedade, pensamentos de desesperança, irritabilidade e ideação suicida. Esse é o diagnóstico de um cabo da PM que passou 34 dias em um hospital psiquiátrico, depois de tentar afastamento da corporação, sem conseguir. "Você grita e ninguém ouve", disse, sob a condição de não ter o nome revelado.
"A minha psiquiatra foi aumentando a quantidade de remédios a ponto de me dizer que não tinha mais como, que eu tinha que sair", afirmou. "Há uma pressão psicológica no quartel, quando você é visto como um 'mão cansada', alguém que não gosta de trabalhar."
Mesmo com o pedido feito pela psiquiatra que o acompanha desde 2007, não foi afastado. "É muito difícil. Tenho laudos, documentos, tudo o que aconteceu no hospital, um relatório completo da minha vida psíquica. Mesmo com tudo isso, não fui atendido em meu pedido de afastamento e voltei a trabalhar", disse.
Dos 19 anos de corporação, ele traz lembranças como a cobrança feita pela mulher de um colega baleado na cabeça durante um tiroteio. "Ela perguntou onde eu estava que não tinha evitado aquilo com o marido dela. É duro, cara", disse.
"Como somos militares, não podemos desobedecer uma ordem, então acabamos trabalhando em frangalhos", afirmou. "Entrei saudável, com família, amigos, brilho no olhar e a PM tirou tudo isso", disse.
PESQUISA
Professor titular da Unicamp e especialista em Psicologia do Trabalho, José Roberto Montes Heloani teve como orientando um ex-major da PM que desenvolveu tese justamente sobre serviço na corporação. "Se o sujeito não babar e não tiver um surto na frente do oficial, então dá para ir para a rua. É uma situação trágica. O policial que pega a arma enfrenta a violência seis, sete vezes por dia", afirma.
Segundo Heloani, no trabalho desenvolvido pelo orientando foi possível detectar frases como "entrei canabrava [aquela que não se verga], saí como bagaço", dando a dimensão de como a estrutura militar o anula. "Como não se admite a doença, ele sequer é medicado. Muitas vezes, ele recorre à droga ilícita e aí se aproxima dos criminosos."
Vice-coordenador do Núcleo de Estudos de Violência e Relação de Gênero do Departamento de Psicologia da Unesp de Assis, Cláudio Edward dos Reis afirma que falta valorizar os policiais. "Temos um grupo de oficiais mais novos, com formação intelectual mais ampla, mas o que permanece é a hierarquia militar, que é rígida."
Sobre a figura do policial como um herói, Reis afirma que o próprio PM tem esse ideal. "Com uma farda e uma arma na mão, ele se transforma. Com viatura em alta velocidade, helicóptero, parece que ele está em um filme de Hollywood, mas aqui é a vida real", diz.
OUTRO LADO
A Polícia Militar afirma que possui um serviço de saúde mental adequado às necessidades da corporação, com o objetivo de garantir que os PMs recebam toda a atenção que a atividade policial exige, "independente de ser militar ou não".
"É também a garantia de que a sociedade está segura e que pode contar com profissionais qualificados. Se não houvesse um sistema de saúde tão efetivo, os números obtidos pela reportagem sequer existiriam, dando a falsa impressão de que os policiais não possuem qualquer tipo de problema", afirmou, em nota.
Segundo a PM, além de existir controle eficiente, a corporação dá "todo o apoio" que um profissional da área de segurança necessita ter. "A profissão policial, independentemente da natureza militar ou civil, possui por si só uma carga de estresse superior à da maioria das profissões, e essa realidade ocorre no mundo todo", disse, em nota.
A PM afirma também que é "preciso ter responsabilidade e ética na forma de divulgação de certas informações, para não se passar à sociedade uma impressão equivocada da realidade, transmitindo uma falsa sensação de insegurança".
LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO
A Polícia Militar demorou seis meses para atender o pedido da reportagem, feito por meio de Lei de Acesso à Informação. Mesmo assim, só forneceu os números após recurso apresentado à Ouvidoria Geral do Estado, que concedeu o acesso em decisão de 3ª instância.
"Ademais, parece difícil enxergar na informação solicitada um dado 'imprescindível à segurança da sociedade e do Estado', como alegou o órgão demandado. Com efeito, requereu o interessado apenas o número de afastamentos, discriminado por ano, sem qualquer individualização que –aparentemente– possa comprometer a segurança de qualquer indivíduo em particular", afirmou o ouvidor Ungaro
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