quinta-feira, 30 de agosto de 2012
Concurso para a Polícia não pode ter vagas para deficientes
O presidente do Supremo Tribunal Federal, em 9 de julho de 2012, deferiu liminar na Reclamação Constitucional 14.145, proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), contra ato da União consubstanciado na publicação dos Editais 9/2012, 10/2012 e 11/2012, dos concursos públicos para provimento de vagas nos cargos de escrivão de Polícia Federal, perito criminal federal e delegado de Polícia Federal, respectivamente, sem fazer reserva de vagas para pessoas portadoras de deficiência.
A liminar foi concedida para suspender os referidos concursos públicos, até que a União publique editais retificadores estabelecendo reserva de vagas aos deficientes físicos. Fundamentou-se a concessão da liminar no descumprimento, pela União, da decisão monocrática da ministra Cármen Lúcia, de provimento do Recurso Extraordinário 676.335, em 26 de março de 2012, tendo em vista o disposto no artigo 557, parágrafo 1º-A do Código de Processo Civil (CPC) e a existência de jurisprudência pacífica no Supremo Tribunal Federal sobre a obrigatoriedade da destinação de vagas em concursos públicos aos portadores de deficiência física.
A Advocacia-Geral da União interpôs agravo regimental, com pedido de reconsideração da referida decisão monocrática, que se encontra pendente de julgamento e concluso à ministra Cármen Lúcia desde maio de 2012.
Diante desse contexto, surgem as seguintes indagações: a) Merece reforma a decisão monocrática da ministra Cármen Lúcia, de provimento do Recurso Extraordinário 676.335 com fundamento no artigo 557, parágrafo 1º-A do CPC? b) O princípio constitucional da reserva de vagas aos deficientes físicos em concursos públicos é absoluto, ou comporta restrições frente a direitos fundamentais de igual valor? c) Há compatibilidade da reserva de vagas para deficientes, especificamente, nos concursos públicos destinados à carreira policial federal?
No que tange à primeira indagação, impende destacar que, de fato, a Corte Suprema possui jurisprudência consolidada sobre a obrigatoriedade da reserva de vagas para deficientes físicos em concursos públicos.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou quanto à temática específica da necessidade de reserva de vagas a deficientes físicos em concursos públicos destinados a cargos que exijam aptidão física plena para o exercício de suas atribuições e cujo concurso de ingresso exija teste de capacidade física e curso de formação com disciplinas que demandem condicionamento físico, como é o caso das carreiras policiais.
O acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, impugnado no Recurso Extraordinário 676.335, não confrontou a jurisprudência do STF a respeito da obrigatoriedade da destinação de vagas em concurso público aos portadores de deficiência. O acórdão tão somente fixou a interpretação do artigo 37, VIII, da Constituição Federal, no sentido de que a admissão de portadores de deficiência, na carreira policial federal, não seria cabível, ante a exigência de aptidão física plena para o exercício das atribuições correlatas aos cargos integrantes dessa carreira.
Nesse sentido, diante da aparente inexistência de acórdãos da Suprema Corte a respeito da referida temática específica, entende-se que deve ser reconsiderada a decisão monocrática recorrida, ou caso assim não se entenda, que a matéria seja submetida ao colegiado.
No que concerne à possibilidade de restrição do princípio constitucional da reserva de vagas aos deficientes físicos em concursos públicos, frente a outros direitos fundamentais de igual valor, importa argumentar o que se segue.
O artigo 37, VIII, da Constituição Federal, dispõe sobre a reserva de percentual de cargos e empregos públicos aos portadores de deficiência nos seguintes termos, verbis: “VIII — a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.”
Apesar de não estar localizado no Título II da Constituição de 1988 (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), o artigo 37, VIII, pode ser considerado um direito fundamental em sentido material. No que tange à abrangência dos direitos fundamentais, Konrad Hesse diferencia os direitos fundamentais em sentido formal e em sentido material. Direitos fundamentais em sentido formal seriam aqueles que, por decisão do legislador constituinte, foram expressamente consagrados como tais na Constituição, no catálogo dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais em sentido material seriam os que, apesar de se encontrarem fora do catálogo, por seu conteúdo e por sua importância, podem ser equiparados aos direitos formalmente fundamentais.
Em razão do caráter aberto, variável e heterogêneo dos direitos fundamentais, frequente é o choque desses direitos com outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente, sendo tal fenômeno denominado pela doutrina de colisão de direitos fundamentais.
A colisão de direitos fundamentais pode ocorrer quando o exercício de um direito fundamental colide com a necessidade de preservação de um bem coletivo ou do Estado protegido constitucionalmente (colisão entre direitos fundamentais e outros valores constitucionais). Ocorre, assim, quando interesses individuais tutelados por direitos fundamentais contrapõem-se a interesses da comunidade, reconhecidos também pela Constituição, tais como a saúde pública, a segurança pública, a integridade territorial, a família, o patrimônio cultural, dentre outros.
A solução da colisão de direitos fundamentais é confiada ao legislador quando a Constituição remete à lei ordinária a possibilidade de restringir direitos. Assim, verificada a existência de reserva de lei para pelo menos um dos direitos colidentes, o legislador poderá resolver o conflito comprimindo o direito ou direitos restringíveis, respeitando o núcleo essencial dos direitos envolvidos.
No presente caso, é de se notar que a Constituição, no inciso VIII do artigo 37, remeteu à lei ordinária a possibilidade de restringir o direito fundamental dos portadores de deficiência à reserva de percentual dos cargos e empregos públicos, ao preceituar que a lei “definirá os critérios de sua admissão”. Assim,depreende-se que o constituinte reconheceu que o mencionado direito fundamental não é absoluto e admite restrições frente a outros direitos fundamentais de igual valor.
O legislador ordinário, tendo em vista o direito fundamental à segurança (art. 5º, caput, da Constituição Federal), restringiu o conteúdo do artigo 37, VIII, da Constituição Federal, ao afirmar, no parágrafo 2º do artigo 5º, da Lei 8.112/90, que o direito dos portadores de deficiência à reserva de cargos é possível apenas nos concursos cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadores. Veja-se o conteúdo do dispositivo legal:
Art. 5º (...)
§ 2o Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso. (grifou-se)
Certo é que o portador de deficiência apresenta limitações ao exercício de determinadas atividades. Assim, é totalmente razoável, proporcional e constitucional a restrição feita pelo legislador ordinário, no sentido de que somente sejam destinadas vagas aos deficientes naqueles concursos destinados a cargos cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência física.
Tal restrição decorre da observância ao direito fundamental à segurança, pois, caso contrário, a atribuição desempenhada por aquele servidor deficiente poderá gerar riscos tanto a ele mesmo, como aos destinatários da prestação do serviço público por ele desempenhado, podendo restar fragilizada a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
O Decreto 3.298/99, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e regulamentou também o tema em questão, por sua vez, prescreve:
Art. 37. Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.
(....)
Art. 38. Não se aplica o disposto no artigo anterior nos casos de provimento de:
(...)
II — cargo ou emprego público integrante de carreira que exija aptidão plena do candidato.
Destarte, conclui-se pela compatibilidade da restrição efetuada pelo parágrafo 2º do artigo 5º da Lei 8.112/90 e pelos artigos 37 e 38 do Decreto 3.298/99, ao conteúdo do artigo 37, VIII, da Constituição de 1988.
Uma vez abordada a constitucionalidade da mencionada restrição feita pelo legislador infraconstitucional, importa tecer esclarecimentos acerca da impossibilidade de serem reservadas vagas aos portadores de deficiência nos concursos públicos destinados ao provimento de cargos integrantes da carreira policial federal.
Nos termos do Decreto-Lei 2.320, de 1987 (que dispõe sobre o ingresso na carreira policial federal), e da Portaria 523, de 1989, do Ministério do Planejamento (que dispõe sobre as atribuições dos cargos da carreira de policial federal), integram a carreira de policial federal os cargos de delegado de polícia federal, perito criminal federal, agente de polícia federal, escrivão de polícia federal e papiloscopista policial federal.
Em uma simples leitura da Portaria 523/89, é possível verificar que as atribuições concernentes aos policiais federais envolvem, dentre outras, a utilização de armas de fogo, o deslocamento, a defesa pessoal, a abordagem e a perseguição aos criminosos. Tais atribuições exigem aptidão física plena e o seu exercício é incompatível com o portador de deficiência.
Apesar de existirem atividades administrativas concernentes à atuação policial, existem outras diversas atividades que exigem condicionamento físico e que são também atribuídas aos policiais. Sem embargo, estão sujeitos a participar de operações de alto risco: repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes, ao contrabando e ao descaminho, ao crime organizado. Operações essas que podem exigir troca de tiros, luta corporal e perseguição.
Ademais, o ato de se reservar vagas nos concursos das carreiras policiais federais aos deficientes, para que esses desempenhem apenas atividades administrativas pode, inclusive, configurar desvio de função. Afinal, o DPF possui uma carreira administrativa composta por administradores, médicos, arquitetos, etc. Ressalte-se que para essa carreira há reserva de vagas aos portadores de deficiência.
Não custa lembrar que as normas contidas nos editais foram elaboradas com auxílio e supervisão de junta médica experiente na avaliação de candidatos em concurso público dessa natureza e são absolutamente essenciais para a seleção dos candidatos adequados aos cargos em foco. Dessa forma, participarão os candidatos de aulas de armamento e tiro com diversas armas curtas e longas; de defesa pessoal policial, onde necessitarão assimilar e executar técnicas de artes marciais, imobilização de pessoas, uso de armamentos menos letais, algemas, defesa de ataques armados e desarmados; de aulas de direção com vários tipos de veículos em ambientes urbanos e rurais, dentre as demais atividades desenvolvidas de forma dinâmica ao longo das 20 semanas que duram os cursos de formação profissional, em horário integral e dedicação exclusiva.
Vê-se que um candidato portador de deficiência não possui condições de cumprir os objetivos propostos no Curso de Formação a contento, sendo impossível dispensar-lhes tratamento diferenciado.
Destarte, conclui-se pela impossibilidade de reserva de percentual de cargos, nos concursos da carreira policial federal, aos portadores de deficiência, em razão da necessidade de aptidão física plena para o exercício das atribuições dos cargos policiais, bem como para a realização do exame de aptidão física e das disciplinas do curso de formação profissional.
Por derradeiro, impende salientar a importância da celeridade do pronunciamento final da Corte Suprema quanto ao tema em questão. Encontra-se atualmente suspenso, em razão do provimento do RE 676.335 (ainda não transitado em julgado) e da liminar deferida na Reclamação 14145, o concurso público destinado ao preenchimento de 600 (seiscentas) vagas do Departamento de Polícia Federal, divididas entre os cargos de escrivão de polícia federal, delegado de polícia federal e perito criminal federal.
Diante da proximidade dos grandes eventos, tais como a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas, e tendo em vista a necessidade de incremento na proteção das fronteiras do nosso país, revela-se imprescindível e urgente o ingresso de novos policiais no Departamento de Polícia Federal, de maneira que a política de segurança pública, traçada pelo Ministério da Justiça em prol dos cidadãos, seja de fato alcançada como um todo. Para tanto, cumpre ao Supremo Tribunal Federal, dentro do seu papel de guardião da nossa Constituição, fixar, o quanto antes, em seu pronunciamento final, a interpretação que deve ser conferida ao artigo 37, VIII, no que tange aos concursos da carreira policial federal. Aguardemos o resultado.
Fonte: conjur
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