domingo, 14 de novembro de 2010

A Polícia Militar do Estado do Espírito Santo e o militarismo

a crise da hierarquia e da disciplina no pós Constituição Federal de 1988

Rogério Fernandes Lima

Capitão da Polícia Militar do Espírito Santo; Bacharel em Direito; Especialista em Segurança Pública; Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais; Professor de Direito Penal nos Cursos de Formação de Soldados da PMES; Professor nos cursos de habilitação de Sargentos e Cabos da PMES; Especializado pela Escola Superior do Ministério Público do Espírito Santo; Chefe da Seção de Polícia Administrativa e Judiciária Militar (SPAJM)

Resumo:

O presente texto tem por foco analisar a questão da hierarquia e da disciplina no âmbito da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo em tempos pós Constituição de 1988, haja vista que se observa nos policiais militares, principalmente nos mais modernos, uma compreensão equivocada do que sejam hierarquia e disciplina nas tropas policiais militares.

Palavras-chave: militarismo, hierarquia, disciplina, obediência e respeito.


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1. Introdução

O presente artigo busca suscitar o debate acerca da hierarquia e da disciplina no pós Constituição Federal de 1988, haja vista que o constituinte originário entendeu por bem denominar o órgão policial como Polícia Militar.

Preliminarmente, em face da determinação constitucional, em síntese, faz-se uma digressão sobre o militarismo, suas origens e princípios.

Seguindo, explicita-se o que se entende por hierarquia e disciplina e como esses pilares são vistos hodiernamente na Polícia Militar do Espírito Santo, tanto no Estatuto da Polícia Militar, Lei 3.196/1978 quanto no Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais (RDME), Decreto nº 254-R, de 11 de agosto de 2000, confrontando-se ainda com a Constituição Federal e a melhor doutrina de direito administrativo do país.

Na análise posta, questiona-se a fragilização das normas militares na Corporação, como fruto do paternalismo e do clientelismo, assim como a não observância rígida da hierarquia e da disciplina, chegando-se a acreditar que nas empresas privadas a hierarquia e a disciplina são mais bem aplicadas que na própria vida castrense da Polícia Militar.

Concluindo-se que é preciso uma releitura dos princípios basilares da Polícia Militar, mitigando-se o militarismo aplicado na Instituição, haja vista a peculiaridade da função policial, que precipuamente está em contato com o público, ao contrário das Forças Armadas, que são voltadas para a beligerância. Ressalta-se que não é possível abrir mão da hierarquia e da disciplina sob pena de desmoronar-se a Corporação militar.


Assim, entende-se que a hierarquia e a disciplina, quer seja na vida militar ou na vida civil, representam a manifestação maior de profissionalismo do servidor que abraçou a carreira pública e colocou-se para servir.


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2. Militarismo
Primeiramente é relevante analisarmos a questão do que é ser militar, sua origem e seus princípios, para compreendermos o porquê dos seus pilares estarem fincados na hierarquia e na disciplina.

Sabe-se que o militarismo é uma instituição secular, não sendo possível precisar se este se espelhou na estrutura da Igreja ou esta é que se espelhou na estruturação da instituição militar. Estudiosos do quilate de Norberto Bobbio e José Cretella Júnior referem-se à estruturação do militarismo a época mais recente, em especial, ao período napoleônico, pois foi nesta época que houve a reestruturação da Administração francesa ao comando do Imperador. Contudo não podemos nos esquecer que desde Esparta se tem a noção de formação militar, ou ainda, não se pode negar que o exército do Império Romano não fosse uma tropa militar.



Assim, segundo Bobbio O Militarismo constitui um vasto conjunto de hábitos, interesses, ações e pensamentos associados ao uso das armas e com a guerra, mas que transcende os objetivos puramente militares.

Colaciona-se ainda, trecho da carta de Moniz Barreto publicada no Jornal do Exército de Portugal, nº 306, de 1893, citada por Cunha (2010, p.2)

Carta a El – Rei de Portugal – O Militar

Senhor, umas casas existem, no vosso reino onde homens vivem em comum, comendo do mesmo alimento, dormindo em leitos iguais. De manhã, a um toque de corneta se levantam para obedecer. De noite, a outro toque de corneta se deitam, obedecendo. Da vontade fizeram renuncia como da vida. Seu nome é Sacrifício. Por ofício desprezam a morte e o sofrimento físico. Seus pecados mesmo são generosos, facilmente esplêndidos. A beleza de suas canções é tão grande que poetas não se cansam de celebrar.

Quando eles passam juntos, fazendo barulho, os corações mais cansados sentem estremecer alguma coisa dentro de si. A gente conhece-os como militares...

Corações mesquinhos lançam-lhes em rosto o pão que comem; como se os cobres do pré pudessem pagar a Liberdade e a Vida. Publicistas de vista curta acham-nos caros de mais, como se alguma coisa houvesse mais cara que a servidão. Eles, porém, calados, continuam guardando a Nação do estrangeiro e de si mesma. Pelo de sua sujeição eles compram a liberdade de todos e defendem da invasão estranha e do jugo das paixões. Se a força das coisas os impede agora de fazer em rigor tudo isto, algum dia o fizeram, algum dia o farão. E, desde hoje, é como se fizessem.

Porque por definição o homem da guerra é nobre. E quando ele se põe em marcha, à sua esquerda vai a coragem, e à sua direita a disciplina.

O fato é que ser militar é ser cumpridor de seus deveres e obrigações, sendo, inclusive, tolhido de alguns direitos e garantias constitucionais, como por exemplo, não cabe aos militares a sindicalização nem a greve e ainda não lhes é permitido filiarem-se a partidos políticos, em que pese possam concorrer ao pleito eleitoral.

Outrossim, às punições disciplinares, em regra, não é possível o uso do instituto do Habeas Corpus, conforme a digressão do art. 142 da CF, assim comentando a impossibilidade jurídica do habeas corpus nas transgressões disciplinares Grinover, Gomes Filho e Fernandes (2009, p. 273):

Esse único caso de impossibilidade do pedido de habeas corpus é justificado pelos princípios de hierarquia e disciplina inseparáveis das organizações militares, evitando que as punições aplicadas pelos superiores possam ser objeto de impugnação e discussão pelos subordinados.

Seguindo na explicação do sentido de ser militar, Brandão (1996, p. 2):

Ser militar é ser um servidor que tem capacidade de lutar com tenacidade, sofrer com estoicismo, perder sem despeito e vencer sem vaidade. É uma pessoa que sente o regime de emergência (ou de prontidão) como algo normal em sua vida. É alguém preparado para as vicissitudes, para deslocamentos extemporâneos e até para morrer (... com sacrifício da própria vida... – assim se faz o juramento).
É um homem ou uma mulher atento à disciplina, não por mera obediência, mas por sentir que a ordem dada é algo necessário.

Desse modo, busca-se do militar uma vida regrada, uma vida proba, trilhada pelo caminho da moralidade, vida esta que é forjada no seio das escolas militares.

O contraponto que se faz é saber se essa vida regrada, o que, aliás, é pertinente a qualquer servidor público, deve adentrar na privacidade e intimidade do policial militar, ao ponto de confundir-se a vida profissional ou pública com a vida privada.

Quadra fazer uma análise do que seja vida privada e vida pública, bem como a proteção que a Carta Magna garantiu aos brasileiros, segundo Cunha Júnior (2009, p. 680):

A vida privada não se confunde com a intimidade, pois é menos secreta do que esta. Não diz respeito aos segredos restritos da pessoa, mas sim à sua vida em família, no trabalho e no relacionamento com os seus amigos, enfim, a vida privada é sempre um viver entre os outros, mas que também exige certa reserva.

Assim, existe a vida social do indivíduo que se divide em princípio em duas esferas: a pública e a privada, sendo que por privacidade, devem-se entender os graus de relacionamento social que o cidadão habitualmente mantém oculta ao público em geral, dentre eles: a vida familiar, as aventuras amorosas, o lazer e o segredo dos negócios.

Desse modo, dentro dessa esfera teríamos demarcado o território próprio da privacidade, formado por relações marcadas pela confidencialidade.

De outra forma, pode-se dizer que não estão protegidos por este ditame constitucional os atos praticados em público com o desejo de torná-los públicos, os fatos pertencentes ao domínio público, as informações passíveis de serem obtidas licitamente e os atos administrativos praticados por agentes públicos.

Observa-se que não se deva adentrar na esfera pessoal do militar, pois os atos da vida privada somente a ele pertencem, sendo uma forma de violência da Administração Militar a intromissão na vida particular do policial, entrementes é pertinente uma ressalva, haja vista a sua peculiar situação, pois em alguns momentos parecem indissociáveis as vidas pública e privada do policial militar.

Neste ponto, a posição de Di Pietro (2010, p. 619) quando analisa a valoração da conduta do servidor público em sua vida privada com repercussões para a Administração Pública.

É verdade que a vida privada do funcionário, na medida em que afete o serviço, pode interessar à Administração, levando-a a punir disciplinarmente a má conduta fora do cargo. Daí alguns estatutos incluírem, entre os deveres funcionais, o de "proceder na vida pública e privada na forma que dignifique a função pública" e punirem com demissão o funcionário que "for convencido de incontinência pública e escandalosa". Pela mesma razão, alguns consideram que o "procedimento irregular", punível com demissão, pode abranger o mau procedimento na vida privada ou na vida funcional (cf. Carlos S. de Barros Júnior, 1972:109).

Num outro viés é relevante atentar para a postura do militar na situação de atividade, aqui sim, espera-se o respeito deste profissional in totum aos princípios do militarismo e da própria Administração Pública; entretanto é importante esclarecer que o militarismo não se confunde com a arbitrariedade, muito pelo contrário, baseia-se na defesa da Lei e das Instituições.

Neste sentido, Figueiredo (2009, p. xv),

O sentido do dever, o pundonor e o decoro devem integrar a vida do militar; constituem a verdade, a ética e a probidade, elementos primordiais, encaminhando-lhe a conduta moral. O desenvolvimento do espírito de cooperação, a prática da camaradagem e o empenho profissional, ao executar os serviços, devem conduzir o comportamento do militar dentro da caserna.
Em nosso cotidiano é necessário observar que a vida militar percorre um caminho que se bifurca, pois inicialmente a vida militar é atrelada ao período nefasto da história brasileira, que é o Golpe Militar de 1964 e seu período subseqüente, onde, diga-se de passagem, houve violações dos direitos humanos, fato que não se pode negar ou esconder.

Por outro lado, a vida castrense sempre causou fascínio na população, principalmente aos infantes, haja vista que o militar é visto como uma pessoa proba, austera, corajosa que tem por escopo o bem comum, ou ainda, é aquele que está sempre se doando aos interesses da nação e do serviço policial militar, mesmo com o risco da própria vida.

Neste contexto, o cidadão comum chega a confundir a vida privada com a vida pública do militar, não diferenciando a interface pública e privada, cobrando condutas de um ser transcendental, infalível, sobre humano, esquecendo-se que por trás da farda existe um ser humano que ri, chora, é pai ou mãe de família, tem sentimentos, enfim, que é humano e está sujeito a erros, assim Charles Chaplin (2010, p. 403) em o ‘Apelo aos homens’:

Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

Comparando os agentes públicos, servidores públicos civis e os militares, entende Justen Filho (2009, p.726):

Assim, por exemplo, o descumprimento por um servidor civil da ordem de um superior configura uma falta funcional, mas sem apresentar a gravidade de que tal conduta se reveste no âmbito do regime dos militares.
Neste sentido, colaciona-se entendimento do Tribunal Regional Federal - 5ª Região, acerca de transgressão disciplinar apresentado por Bulos (2008, p.1171).

A rigidez disciplinar e a rigorosa observância à hierarquia militar, impostas pela natureza do serviço e os fins a que se destinam as Forças Armadas, tuteladas, inclusive, pela própria Constituição Federal, justificam a aplicação da penalidade de prisão em face da transgressão disciplinar, prevista em lei e em regulamento, caracterizada pela utilização de documento oficial para questionar determinação emanada de autoridade competente e hierarquicamente superior. Ato administrativo punitivo revestido de competência, forma, finalidade e motivação. Apelação improvida. Sentença a que se confirma. (TRF 5ª Região, AC 95.0583649/PE, rel. Juiz José Delgado, 2ª Turma, decisão: 17-8-1995, p. 61844)

Desse modo é preciso entender que o constituinte originário deliberou em constituir uma polícia chamada militar, sendo assim não se pode fugir ou burlar os preceitos que regem a vida na caserna por afronta, inclusive, ao texto da Carta Magna.

Saliente-se que, apesar desta opção do constituinte originário, não se pode negar que a função policial é, essencialmente, uma função civil e que existem diferenças perceptíveis na rotina dos militares estaduais e dos militares, pois em regra o trabalho dos militares estaduais envolve o contato diário com o cidadão, seja no atendimento de ocorrências, e aí pode estar incluído o confronto com meliantes, seja num atendimento assistencial realizando um parto.

O militarismo empregado nas Polícias Militares possui peculiaridades e assim, entende-se que deva ser mitigado em relação ao militarismo que vige nas Forças Armadas, entrementes, uma dúvida não cabe, qual seja que não se pode ceder espaço ao desrespeito aos seus princípios basilares – hierarquia e disciplina.


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3. Hierarquia
O vocábulo hierarquia, segundo Caldas Aulete (2007, p. 537) é subordinação em diferentes graus ou categorias (hierarquia militar/eclesiástica).

Pode-se, também, entender a hierarquia como a divisão em graus, categorias, níveis ou qualquer outro parâmetro designado. Fala-se em hierarquia das normas, social, militar, eclesiástica, familiar e tantas outras.

A hierarquia é a ordenação ou subordinação de um agente inferior a outro superior, no sentido de um servidor com menos atribuições ser subordinado a outro servidor com mais atribuições e responsabilidades.

É importante considerar que a hierarquia apesar de bem delimitada na estrutura militar não fica subsumida somente ao âmbito militar, mas, também está presente nas instituições civis – públicas e privadas, nestas últimas, conforme prevê a própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em seu art. 3º, recebe outro enfoque, sendo a hierarquia entendida como dependência.

Tal diferenciação é pertinente já que nosso Código Penal, em seu art. 22, somente considera como causa excludente de culpabilidade a obediência hierárquica, pois possui um viés de direito público.

Assim, colhe-se dos ensinamentos de Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 563) quando dissertam acerca da obediência hierárquica.

Em princípio, deve tratar-se de uma ordem que emane de um superior hierárquico, isto é, de quem se encontra em condições legais de comunicá-la, e estar num plano superior de relação hierárquica pública, não sendo admissíveis a hierarquia decorrente da relação privada, como a comercial, a trabalhista privada, de ordens religiosas, familiar etc. É lógico que o superior hierárquico deve ser competente para expedir a ordem.

Sendo o direito penal a ultima ratio colaciona-se o entendimento de Bitencourt (2003, p. 317) acerca da obediência hierárquica frente o previsto no Código Penal Militar.

Cumpre, a esta altura, fazer uma distinção entre o funcionário civil e o funcionário militar. O funcionário civil não discute a oportunidade ou conveniência, mas discute a legalidade.

Agora, no caso militar, a situação é completamente diferente. Ele não discute a legalidade, porque tem o dever legal de obediência, e qualquer desobediência pode constituir crime de insubordinação (art. 163 do COM).

O Código Penal Militar, diferentemente do Código Penal, estabelece, implicitamente, apenas que o militar não deve obedecer a ordem manifestamente criminosa (art. 38, § 2º).

Sabe-se ainda, que as instituições militares são pautadas pela hierarquia e pela disciplina, não sendo diferente na Polícia Militar do Estado do Espírito Santo, tendo assim definido a Lei nº 3.196/1978 acerca da hierarquia.

Art. 11 – A hierarquia e a disciplina são a base institucional da Polícia Militar. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.

§ 1º - A hierarquia policial-militar é a ordenação da autoridade em níveis diferentes, dentro da estrutura da Polícia Militar. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação, se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade.

§ 2º - Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo policial-militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

§ 3º - A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida, entre policiais militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.
Analisando o Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais (RDME), vê-se ainda:

Art. 6º - A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura da PMES e do CBMES, por postos e graduações.

(...)

§ 2º - O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade.
Assim, a hierarquia se qualifica como a ordenação sequencial de autoridade dentro dos níveis hierárquicos de uma Corporação, onde o agente público menos graduado se subordina ao agente público mais graduado numa relação de direito público, sendo que ao agente mais graduado serão delegados determinados poderes e atribuições, contudo ser-lhe-ão cobradas mais responsabilidades, inclusive sendo responsabilizado, se exacerbar de seus poderes – abusando ou desviando de seus fins.

Numa outra digressão, entretanto não menos relevante, Cretella Júnior (2009, p. 73-74) nos ensina sobre hierarquia e seu desenvolvimento na história.

Hierarquia é vocábulo que nos chegou, do grego, pelo latim eclesiástico. Formado, artificialmente, sobre as bases fornecidas pelo grego hieros (sagrado) e arkhia (comando), passou da linguagem religiosa para a profana e, mais particularmente, para a língua militar, estendendo-se a seguir para a terminologia do direito público em que adquiriu o sentido técnico de subordinação, escalonação, dependência.

Desta forma é relevante ressaltar que a questão hierárquica é impessoal, pois não deve o superior colocar-se numa posição de semi-Deus, outrossim, estar cônscio de suas prerrogativas e responsabilidades, por isso, deve-se primar pelo respeito aos princípios insculpidos na Carta Política de outubro de 1988, tendo como garantia maior a dignidade da pessoa humana.

Na compreensão de Alexandrino e Paulo (2005, p.155),

Os servidores públicos têm o dever de acatar e cumprir as ordens de seus superiores hierárquicos, salvo quando manifestamente ilegais, hipótese em que para eles surge o dever de representar contra a ilegalidade, conforme, no caso dos servidores civis federais, preceitua a Lei nº 8.112/1990, art. 116, incisos IV e XII.
Concorda-se, por fim, com a lição de Carvalho Filho (2009, p.65).

Hierarquia é o escalonamento em plano vertical dos órgãos e agentes da Administração que tem como objetivo a organização da função administrativa. E não poderia ser de outro modo. Tantas são as atividades a cargo da Administração Pública que não se poderia conceber sua normal realização sem a organização, em escalas, dos agentes e dos órgãos públicos. Em razão desse escalonamento firma-se uma relação jurídica entre os agentes, que se denomina de relação hierárquica.
Assim a hierarquia deve ser entendida como o escalonamento de níveis ou graus hierárquicos de determinada instituição, buscando a uniformização de ordens e comandos para a boa prestação do serviço público. Na seara militar, além deste sentido, a hierarquia envolve a estruturação de carreiras, círculos e responsabilização dos militares, criando desse modo, um parâmetro para delimitar as atribuições dos agentes, bem como distribuição de responsabilidades aos responsáveis, sendo conhecida, também, como ‘cadeia de comando’.


4. Disciplina
A palavra disciplina que, no geral, reflete castigo que gera obediência, ou ainda, na sua raiz etimológica significa discípulo, ambas de origem latina, representa – pupilo, o qual, por sua vez, significa instruir, educar, treinar, modelar o caráter.

Pode-se ainda, definir a disciplina, de um modo geral, como um hábito interno que facilita que cada pessoa cumpra suas obrigações, é o autodomínio, é a capacidade de usar a liberdade pessoal, isto é, a possibilidade de atuar livremente superando os condicionamentos internos e externos que apresentam na vida cotidiana.



Já em sua representação militar a disciplina é considerada como uma qualidade a ser perseguida pelos militares, com o fito de torná-los aptos a não se desviarem de padrão desejável para o bem comum da tropa, mesmo em situação de pressão extrema.

Assim por esse pilar da estrutura militar - a disciplina, e seu significado na vida castrense, percebe-se que não pode existir hierarquia sem disciplina nem o inverso.

O Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo (RDME), preleciona acerca da disciplina militar.

Art. 7º - A disciplina militar estadual é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes da PMES e do CBMES.

§ 1º - São manifestações essenciais de disciplina:

I – a correção de atitudes;

II – a rigorosa observância das prescrições legais e regulamentares;

III – a obediência pronta às ordens legais;

IV – a dedicação integral ao serviço;

V – a colaboração espontânea à disciplina coletiva e à eficiência da instituição;

VI – a consciência das responsabilidades;

VII – o zelo para a preservação dos padrões de qualidade profissional, objetivando a melhoria e a credibilidade perante a opinião pública;

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VIII – as manifestações espontâneas de acatamento dos valores e deveres morais e éticos.


Por isso, vale-se do entendimento de ilustre administrativista pátrio Miguel Seabra Fagundes, citado por Bulos (2008, p. 720) em suas anotações a Constituição Federal de 1988.

Onde há hierarquia, com superposição de vontades, há, correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina, isto é, no rigoroso acatamento, pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide hierárquica, às ordens, normativas ou individuais, emanadas dos órgãos superiores. A disciplina é, assim, um corolário de toda organização hierárquica.

A disciplina deve ser entendida, primeiramente, como o respeito e fiel cumprimento às ordens emanadas de superior hierárquico, o que para o policial militar representa o respeito a tudo o que prescreve a Constituição Federal, as leis nacionais e estaduais e a legislação peculiar, seja o respeito aos sinais, bandeira, hino, tropa e até as coisas mais comezinhas, como a urbanidade, e aqui deve ser dito, que a urbanidade é uma via dupla, porque requer que superior e subordinado se tratem com respeito mútuo, da mesma forma, no trato com os cidadãos.

Noutro enfoque, a disciplina é o poder que é dado ao superior hierárquico para fiscalizar seus subordinados, podendo exigir que a sua conduta seja adequada aos preceitos legais, sob pena de ser responsabilizado disciplinar e criminalmente e no caso dos militares, também se responde pelo previsto no Código Penal Militar no Título II – Dos crimes contra a autoridade ou disciplina militar, diversos ilícitos que podem ser cometidos pelos militares.

Acerca da disciplina entende Carvalho Filho (2009, p.68) Disciplina funcional, assim, é a situação de respeito que os agentes da Administração devem ter para com as normas que os regem, em cumprimento aos deveres e obrigações a eles impostos.

Dissertando acerca do poder disciplinar, ressalta Meirelles (2003, p. 120):

O poder disciplinar é correlato com o poder hierárquico, mas com ele não se confunde. No uso do poder hierárquico a Administração Pública distribui e escalona as suas funções executivas; no uso do poder disciplinar ela controla o desempenho dessas funções e a conduta interna de seus servidores, responsabilizando-os pelas faltas cometidas.
Desta forma, a melhor compreensão é que o poder disciplinar, inerente ao superior, é complementar ao poder hierárquico não podendo, inclusive, o superior deixar de aplicá-lo no caso de constatar a transgressão disciplinar sob pena de macular o ordenamento jurídico, seja no cometimento de crime – condescendência criminosa, seja na prática de improbidade administrativa por ferir os princípios da Administração Pública, conforme o artigo 11 da Lei 8.429/92.

Deve-se esclarecer que disciplina também é a correta observância das normas, regras e determinações, já o poder disciplinar é o ônus que a autoridade tem de exercer na correta gestão da coisa pública, no caso a gestão de pessoal.

Assim, de tudo que até aqui foi dito é importante ressaltar que não existe uma diferença muito grande entre a disciplina exercida por servidores públicos civis e os militares, contudo, no entender de Marçal Justen Filho a diferença baseia-se primordialmente nos valores que trazem consigo - militares e servidores públicos civis, além do ônus que os diferenciam, colocando ainda, que aos militares é dado o uso da força para manutenção da ordem e paz pública.

Manifesta-se Justen Filho (2009, p. 724):

Os militares são os agentes estatais investidos de modo específico e especializado na competência para o exercício da violência monopolizada pelo Estado. Precisamente por isso, o regime jurídico a eles aplicável é diferenciado. O rigoroso regime de hierarquia destina-se não apenas a assegurar o desempenho eficiente de suas funções, mas a proteger o regime democrático e o princípio da soberania popular.
É de peculiar importância trazer ao conhecimento que o constituinte reformador na Emenda Constitucional nº 18/98, retirou dos militares a condição de servidores públicos ou funcionários públicos, colocando-os à parte, como militares ou militares estaduais, contudo, na interpretação que se deve fazer do texto constitucional, os militares não deixaram a condição de servidores públicos ou ainda, não deixaram de ter seus direitos constitucionais protegidos, como obreiros que são do Poder Público. Tal esclarecimento se faz necessário, pois os militares já foram também conhecidos como servidores públicos militares ou ainda, servidores militares, como dito, hoje são somente, militares ou militares estaduais, com regime e legislação própria.


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5. Conclusão
Concluindo o presente artigo, algumas considerações se fazem necessárias.

Primeiramente, não se deve generalizar acerca dos "recrutas" ou policiais mais modernos como desenquadrados, mas sim a reflexão serve para todos os policiais, de todas as graduações ou postos, recrutas ou não, haja vista que o respeito à hierarquia e à disciplina deve ocorrer por todos.

Outro ponto, que é bom ser lembrado, passa pela questão sindical na Polícia Militar, mesmo que a Constituição Federal vede aos policiais militares a sindicalização, vemos que na prática as associações vêm funcionando como sindicatos.

Ressalte-se que na mente dos policiais militares o sindicalismo, ou melhor, o sentimento sindical, é o que vem prevalecendo como meio de luta; o que deve ser rechaçado, veja, não se dizendo que os policiais militares não devem reivindicar seus direitos, muito pelo contrário, mas como guardiões da Lei devem, por meio das associações, pleitearem o direito com argumentações fundamentadas e não com táticas sindicais, não que se pense que estas sejam incorretas (e até que algumas são), mas que a postura, enquanto militares estaduais, não permite esse comportamento, não permite a balbúrdia.

Assim, como exemplo, pode-se falar da Ação Civil Pública, a qual permite que as associações, legitimadas, representem no judiciário seus associados contra os órgãos públicos, como também existem as ações coletivas que podem ser impetradas pelas associações até mesmo como meio de pressão.

Observa-se que o vulgar e populista discurso político é o que vigora. Não se está preocupado com a carreira, a profissão ou mesmo a segurança pública, mas sim, com o trampolim político que isso pode proporcionar.

Desse modo é relevante que seja pontuado um marco no fito de delimitar e explicitar que o policial militar (praça ou oficial) submete-se a um concurso público, deveras concorrido e passa por uma formação em escolas de qualidade, hoje na maioria das Polícias Militares se obtém o título de graduado ou tecnólogo em segurança pública, e recebe, inclusive, salários durante sua formação, com a perspectiva de uma carreira sólida.

Observa-se que o cidadão além de se submeter a um estressante concurso público e passar por uma formação profissional disputada, entra em contato com todos os princípios da vida militar, e depois de formado se embrenha em questionar os ditames da profissão abraçada.

Igualmente não se quer dizer que alguns princípios não devam ser questionados, principalmente se confrontados com a Constituição da República, ou seja, o cidadão se propõe a prestar um concurso público para ingressar numa vida militar e após seu ingresso, se assim podemos dizer, diz que não sabia que a vida militar era uma vida regrada, que era uma vida dentro dos limites da hierarquia e da disciplina.

O recruta e mais recentemente os militares envolvidos com a questão ‘sindical’ ou política, esquecem-se de quais são os princípios que regem a vida militar; contudo, o que se quer reforçar é que, ao contrário, os princípios da caserna devem ser entendidos como pilares fundamentais de nossa Corporação, mas que isso não nos deixa impedidos de pleitearmos nossos direitos.

Assim, parafraseando Rousseau os homens viviam livres e decidiram pactuar viver em sociedade, por isso deixaram o estado natural para viverem no estado social, da mesma forma o militar, enquanto era civil vivia conforme sua consciência, onde segundo a Lei civil, podia fazer tudo o que a lei não proibisse, mas optou por seguir carreira militar, onde a estrita legalidade é mais acentuada do quem qualquer outra carreira pública, por isso não pode renegar os princípios que regem a vida castrense.

Outrossim, é necessário que sejam quebrados paradigmas e clientelismo na Instituição, buscando-se uma profissionalização da gerência e dos servidores da Polícia Militar.

Por derradeiro, o que se quis esclarecer no sucinto artigo é que a vida castrense é uma vida de doação, busca-se do militar uma postura diferenciada do cidadão ou servidor civil, não a desmerecendo, mas que a própria formação nos obriga, por isso é necessário uma releitura da hierarquia e da disciplina na Polícia Militar do Estado do Espírito Santo reforçando estes princípios para que a Instituição não perca seu rumo neste século XXI.


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6. Referências:
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BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1998. V.1

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. V.1. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003.

BRANDÃO, Aloir Silva. A posição e o "status" dos militares. Disponível em:< www.operacoesespeciais.com.br/userfiles/O%20termo%20militar(1).doc> acessado em 15 setembro 2010.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 8ª edição, revista e atualizada até a EC nº 56/2007. 2008.

CALDAS, Aulete. Dicionário Caldas Aulete da Língua Portuguesa. Edição de bolso. Rio de Janeiro: Lexington. 2007.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª edição, revista, ampliada e atualizada até 31/12/2008.

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Fonte: Jus Navigandi http://jus.uol.com.br/revista/texto/17791/a-policia-militar-do-estado-do-espirito-santo-e-o-militarismo

3 comentários:

  1. Artigo como esse não merece nem comentários quando se tem o objetivo de confrontá-lo com a constituição e seus princípios. Considerando-se principalmente no que respeita ao principio da dignidade da pessoa humana. Não vamos generalizar e nem tão pouco dizer que não tenha melhorado consideravelmente. Mas ainda é um absurdo a forma que alguns superiores ainda deturpam e com base nessa "hierarquia e disciplina" tem arbitrariamente desrespeitado seus semelhantes. Nada mais...

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  2. A Hierarquia militar seria uma das relações de convivência perfeita, no ambiente militar, se não fosse seu mau uso por consideravel parte dos superiores hierarquicos, que se utilizam dos dispositivos do regulamento para a prática de todo tipo de humilhação, assédio moral,desrespeito e injustiça.

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    1. Falou pouco,mas disse tudo.
      Vez em quando ainda notamos superiores hierárquicos que não mereceriam nem mesmo comandar segurança clandestina devido o seu despreparo.
      Eles acham que se tratar o subordinado com educação e respeito,mesmo que seja repreendendo ou punindo,sua graduação ou patente vai diminuir.
      sd 31 mil do 22BPM(Surubim)

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