Militares defendendo a democracia e “jornalistas” pedindo censura à imprensa? Não há paradoxo nenhum nisso! Há só história
Vivi ontem um dia muito especial. Participei, em companhia de Merval Pereira, de O Globo; de Rodolfo Machado Moura, diretor de Assuntos Legais da Abert, e de Paulo Uebel, do Instituto Millenium, de um debate sobre liberdade de expressão. O encontro aconteceu na sede do Clube Militar, no Rio. Mais de 400 pessoas lotaram o salão da entidade — todos os assentos ocupados e algumas pessoas de pé. Enquanto conversávamos, vinha um alarido da rua. Uns 20 gatos pingados da Juventude Socialista — com o apoio da UNE, parece — protestavam do lado de fora: contra o Clube Militar, contra os debatedores, contra o debate! Como todos por ali, na mesa e na platéia, defendiam a liberdade de expressão e a Constituição do Brasil, os que gritavam queriam o contrário, certo?
Não é que eles estivessem contra o que dizíamos. Eles são contra o fato de existirmos.
Também ontem, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo abrigou um encontro de defensores da censura. Sob o pretexto de combater um suposto “golpe midiático”, foram lá engrolar palavras sem sentido contra a imprensa, tentando intimidar veículos de comunicação e jornalistas. Os promotores da triste patuscada falaram em 500 pessoas presentes. Uma ova! Não havia 200. É evidente que eu não estava lá, mas estou bem-informado a respeito. Um fracasso! PT, Centrais Sindicais, UNE etc. conseguiram juntar menos gente do que juntou o Manifesto em Defesa da Democracia, anteontem, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco — e sem máquina nenhuma na convocação, feita com um miserável dia de antecendência. O documento, diga-se, conseguiu reunir mais de 20 mil assinaturas em 24 horas. Já falo a respeito. Sigamos.
Antes de sair de casa, minha mulher me alertou para um comentário de Lúcia Hippolito na CBN. Huuummm… Querido leitor, quando você não conseguir explicar o que vê, quando o fato contraria o seu diagnóstico, o seu prognóstico ou os seus preconceitos, faça como Lúcia Hippolito: diga que se trata de “um “paradoxo!”
A saída é boa porque, a partir daí, você pode se dispensar de pensar, e ninguém se sente estimulado a lhe cobrar mais nada. Ah, sim: você precisa narrar o descrever o paradoxo com ênfase, chamando a atenção para algumas sílabas, de modo que a entonação se confunda com um argumento, entenderam?
Lúcia garrou numa conversa com Heródoto Barbeiro. Transcrevo (encomprido algumas sílabas para chamar a atenção para as suas ênfases). De início, apesar de uma certa arrogância intelectual de quem vê, com olhos muito percucientes e sábios, o Brasil numa jaula, a coisa parece ir bem:“Eu acho o Brasil um país interessantíssimo. Eu não perderia essa campanha eleitoral por nada. Cê repara o seguinte: a gente tem um presidente em final de segundo mandato, com oiteeeeeeeennnnnta por cento de popularidade, tuuuudo indica que vai eleger a sucessora em primeiro turno, mas ele tá infeliz, Heródoto! Ele vocifera contra tudo e contra todos; ele tá raivoso no palanque; ele briga com todo mundo… Os empresários estão felicíssimos: jamais ganharam tanto dinheiro. Os banqueiros não conseguem parar de rir, mas o Lula se diz vítima do preconceito das elites. Aí cê tem o Zé Dirceu, que, depois de municiar a imprensa durante anos com dossiê contra os adversários, agora ele faz discurso contra o excesso da liberdade de informar e a necessidade de controlar a mídia.
Faço uma pausa aqui para comentar. Lúcia chamará isso tudo, daqui a pouco, de paradoxo, embora, segundo ela, não seja o maior deles — este está por vir. Bem, não vejo nada de paradoxal aí; vejo é história, nunca é paradoxal, coerente ou incoerente. Lula não está infeliz! Trata-se apenas de um governante de perfil autoritário, que decidiu esmagar a oposição, abusando escancaradamente do poder. Se não me engano, Lúcia é formada em história — Heródoto, creio, também; ao menos deu aula em cursinho sobre a disciplina. Lula não está com problema psicológico, faniquito ou transtorno de personalidade: Ele tem método!
Apontar um “paradoxo” nesse comportamento de Lula faz supor que o PT não tenha uma história de desrespeito à democracia, considerada desde sempre um caminho não mais do que tático para chegar ao poder. O relato que ela faz da atividade clandestina de Dirceu quando na oposição é uma das evidências do que estou afirmando. Quando o presidente vai ao horário eleitoral com pompa de chefe de estado e afirma que o candidato da oposição é “líder da turma do contra” — sem falar no uso vergonhoso da máquina pública na campanha —, deixa claro o seu descompromisso com a democracia.
Mais: ele não está “brigando com todo mundo”. Está brigando com a imprensa porque não quer que ela noticie as lambanças de seu governo. Dizer-se “perseguido pelas elites”, embora tenha o apoio dos banqueiros e dos grandes empresários, também não revela paradoxo nenhum, mas uma tática eleitoral — muito típica populismo. Há farta bibliografia a respeito. Voltemos à fala da comentarista.
Heródoto, os jornalistas, que deveriam ser os primeiros a defender a liberdade de expressão, abriram a sede de seu sindicato hoje em São Paulo para que as centrais sindicais façam um ato público contra a imprensa. Cê já viu isso? Agora, os intelectuais assinam um manifesto, que é o papel deles: intelectual assina manifesto. Agora, só que o manifesto é contra o autoritarismo do Lula, mas quem lidera as assinaturas são os fundadores do PT, Hélio Bicuuuudo; entusiastas do PT como Dom Paulo Evaristo Arns. Eu acho até um pouco exagerado, sabem Heródoto? Porque eu acho que a democracia não está sendo ameaçada. As instituições tão funcionando; nós vamos ter eleições; a campanha tá indo de vento em popa; o STF tá julgando a validade da Lei do Ficha Limpa, o julgamento deve continuar hoje…
Interrompo de novo: deixo a questão do sindicato para o comentário do trecho final. Quero tratar de outras coisinhas. Não! Papel de intelectual não é assinar manifesto, não! Pode até fazê-lo. Mas seu papel essencial é pensar e produzir saber para que entendamos melhor o presente, para que nos orientemos melhor sobre o passado, para que saibamos mais de nos mesmos e do mundo. Se Lúcia quiser, posso lhe enviar uma bibliografia comentada da obra de pelo menos quatro deles: José Arthur Giannotti, Leôncio Martins Rodrigues, Celso Lafer e Marco Antonio Villa. O comentário é boboca, frívolo. Villa, aliás, tem um belo trabalho sobre o governo João Goulart que talvez diminua o assombro de Lúcia sobre certas questões (falo abaixo).
Há um fundador do PT assinando o manifesto: Bicudo! Mas poderia haver 10! Também nisso não há nenhum paradoxo. Ao contrário até. Os partidos de esquerda, mesmo essa esquerda dinheirista do PT, costumam engolir seus filhos com impressionante sem-cerimônia, como Saturno naquele quadro de Goya. Bicudo, diga-se, caiu fora quando o partido resolveu passar a mão na cabeça dos mensaleiros. Mas onde está o “paradoxo” aí? É paradoxal que ex-petistas defendam o regime democrático? Por quê?
Quanto à questão da democracia, aí são só palavras impensadas mesmo, né? Apelando à lógica elementar, é preciso afirmar: se as eleições tivessem sido suspensas e se o STF já não julgasse com liberdade, então não seria mais “democracia ameaçada”, mas democracia extinta. Lembro à comentarista que violações de sigilos, investigações conduzidas por órgãos do estado para esconder o delito — foi o que fez a Receita, certo? — e balcão de negócios na Casa Civil são ameaças evidentes às instituições. O que mais ela quer? Vamos à última, e mais polêmica, parte.
Agora o maior paradoxo de todos, Heródoto, é que o Clube Militarrrr [ela deu força à oxítona], como você sabe, que exerceu papel importantíííísimo na história do Brasil, está realizando hoje no Rio de Janeiro um papel [acho que ela queria dizer debate] sobre a democracia ameaçada. É bem verdade que o Clube Militar sempre liderou a turma que ameaçava a democracia e agora tá querendo defender. É ou não é um país interessantíssimo para a gente viver, Heródoto Barbeiro? É o país do paradoxo político. Eu não perderia essa campanha eleitoral por nada.
Lúcia trata com óbvia ironia o Clube Militar, que exerceu, de fato, papel importantíssimo na história do Brasil, como ela e Heródoto deveriam saber, formados que são em história. Se a referência irônica é a 1964 — e caberia qualificá-la de todo modo —, lembro a ambos que o Brasil já existia antes. Por que ela não escreve um artigo tentando provar a irrelevância dos militares — ou seu papel apenas nefasto — na construção da democracia? Não escreveria porque, por óbvio, não poderia. Prefere reforçar preconceitos com entonações supostamente significativas.
Uma pergunta a Lúcia Hippolito — pergunta retórica; quem sabe isso a estimule a escrever um post a respeito: ainda que a sua leitura sobre o Clube estivesse correta, o fato de agora ele defender a democracia não deveria ser saudado como um avanço? Ah, ocorre que em seu modelo teórico, militares têm de combater a liberdade de expressão; se eles defendem, ela grita: “Paradoxo!”.
Mais: o que há de paradoxal na manifestação ridícula de ontem no Sindicato dos Jornalistas? Nada! Os que estavam lá são herdeiros — ainda que bem mequetrefes, ainda que uma gente bem chulé — das ilusões armadas (não a dos militares!) do pré-64, de 64 e do pós-64. Diga aí, dona Lúcia Hippolito: era democracia o que eles queriam então? É democracia o que eles querem hoje? Apresente-me um só texto das esquerdas de 1964 ou de 1968 defendendo o regime democrático, unzinho só, “para fazer remédio”, como se diz em Dois Córregos! Nada! Não existe!
Os paradoxos que Lúcia vê nascem de uma visão deturpada sobre o presente e desinformada sobre o passado. Como afirmei a jornalistas que me entrevistaram depois do evento, ainda que essa leitura maniqueísta do papel dos militares e da esquerda estivesse correto, forçoso seria reconhecer, então, que os militares avançaram, progrediram e aprenderam o valor universal da democracia. Já as esquerdas — tanto aqueles coitadinhos que foram protestar ontem às portas do Clube quanto as cobras criadas com dinheiro público que foram honrar anos de delinqüência intelectual no sindicato — evidenciam que não esqueceram nada nem aprenderam nada. E não há paradoxo aí.
Não há dificuldade nenhuma em provar que a história dos militares brasileiros está muito mais comprometida com a democracia do que a história da esquerda brasileira — ou da esquerda de qualquer país do mundo. Não precisa ir muito longe: ainda hoje há quem se escandalize com os chamados mortos da ditadura. De fato, depois de rendidos pelo estado, não deveria ter morrido um só preso (morte na batalha é outra coisa; escolhe-se matar ou morrer). Mas tenho a certeza de que a esmagadora maioria daqueles que foram pedir censura à imprensa são, por exemplo, defensores do regime cubano, responsável pela morte de 100 mil e pelo exílio de quase 2 milhões. Para esses vigaristas morais, matar 400 faz os bandidos eternos, mas matar 100 mil faz os heróis da civilização. Ora, tenham vergonha na cara!
Ontem, no Clube Militar, mais de 400 pessoas, entre civis e militares da ativa e da reserva, aplaudiram palavras em defesa da democracia, do estado de direito e da Constituição do Brasil. Aliás, eu só era um dos convidados, suponho, porque sou esta pessoa exótica: defendo as instituições e as leis.
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