Nos EUA, promotores processam 1,5% dos policiais suspeitos de assassinato
Em um lapso de 20 dias, dois policiais brancos escaparam de processos criminais por matar pessoas negras, desarmadas, nos Estados Unidos, por decisão de “grand jury" — um nessa quarta-feira (3/12) em Nova York, outro em 24 de novembro, em Ferguson, Missouri. Manifestações de protestos, algumas vezes violentas e com muitas prisões, estouraram em todas as grandes cidades do país e ocuparam a mídia. Mas, à parte da efervescência nas ruas, a comunidade jurídica discute as falhas do sistema judicial americano. A principal, provavelmente, é a de atribuir a função de processar policiais a promotores públicos. Na prática cotidiana, essas duas categorias de servidores públicos são colegas de trabalho.
Em números, os promotores públicos só processam 1,5% dos policiais suspeitos de homicídios, de forma que o restante jamais vai a julgamento para um tribunal do júri decidir se houve culpa ou não. A Universidade Estadual Bowling Green fez um levantamento de 2.718 casos e descobriu que, desse universo, apenas 41 policiais foram acusados de homicídio doloso (murder) ou homicídio com grau atenuado de culpa (manslaughter), de acordo com oThe Progressive e o Wall Street Journal.
Por enquanto, há apenas uma proposta para contornar o problema causado por essa espécie de “conflito de interesses”: aprovar lei estabelecendo que policiais devem ser investigados e processados por “promotores especiais”. Ninguém sugeriu, até o momento, quem poderia exercer a função de “promotor especial”.
Outra instituição falha no sistema seria o próprio “grand jury” — organismo que exerce a dupla função, separadamente dos tribunais, de “investigar possíveis condutas criminais”, produzindo documentos, e de denunciar ou se recusar a denunciar suspeitos de crimes. O problema é que, no “grand jury” não há procedimentos contraditórios: apenas os promotores e os jurados investigam um caso. E como o “grand jury” opera em segredo, fica mais fácil para os promotores “defender” a inocência dos policiais.
Foi o que aconteceu em Ferguson e em Nova York, de acordo com os sites do Daily News, USA Today, Vox, International Business Times e diversas outras publicações. Um “grand jury” sequer tem a obrigação de encontrar provas substanciais do crime ou decidir que as provas comprovam o crime acima de uma “dúvida razoável”. Essa seria a função do tribunal do júri. Ao “grand jury” cabe apenas examinar se há indícios suficientes para indicar uma “causa provável” para o crime.
Em Nova York, o policial branco Daniel Pantaleo aplicou uma “gravata” em Eric Garner, um negro, ao tentar prendê-lo por vender cigarros sem pagamento de impostos. A ação resultou no que o “IML” local descreveu, em laudo, como “morte por estrangulamento”. A operação policial foi filmada por Ramsey Orta, que uma semana depois foi preso sob acusação de porte ilegal de arma (liberado mais tarde) e serviu de testemunha. Orta disse ao Daily News que os promotores e os jurados o ouviram por menos de dez minutos. E só fizeram perguntas sobre ele mesmo e sobre Garner. Nenhuma pergunta sobre a ação de Pantaleo e dos demais policiais.
Pantaleo, por sua vez, teve oportunidade de se explicar, defender a tese de que estava apenas exercendo suas funções policiais, para as quais foi treinado, “mostrar arrependimento” pelo fato de a operação ter terminado em morte e apresentar suas condolências à família. Na verdade, a “cartilha” da Polícia de Nova York proíbe os policiais de estrangular ou sufocar um suspeito, no momento da prisão. Teoricamente, os demais policiais na cena poderiam também ser responsabilizados, porque Garner anunciou que poderia morrer, ao dizer algumas vezes que não podia respirar. Os demais policiais deveriam intervir para salvar sua vida.
Em Ferguson, o policial branco Darren Wilson matou com vários tiros o adolescente negro Michael Brown, desarmado, suspeito de roubar maços de cigarro em uma loja. Transcrições do “grand jury”, obtidas pela imprensa, mostraram que os promotores usaram estratégias da defesa, para ajudar os jurados a optar por não denunciar o policial.
Os promotores deixaram o policial relatar toda sua versão da história, sem contestá-lo em qualquer momento. E, para esclarecer melhor as coisas, lhe fizeram perguntas indutoras de respostas (leading questions) para ajudá-lo a formar um quadro favorável. Um exemplo: “Quando Brown colocou seus braços no interior do carro, você tentou impedir que ele tomasse sua arma, correto?”
Um artigo da MSNBC afirma que os promotores induziram os jurados a erro. De acordo com “uma análise de documentos do “grand jury”, os promotores apresentaram aos jurados uma lei desatualizada, segundo a qual um policial pode atirar em suspeito que, simplesmente, tentar fugir. Essa lei estadual foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte dos EUA em 1985. Segundo a decisão, um policial só pode atirar em duas circunstâncias: 1) se o suspeito em fuga representar uma ameaça para outras pessoas; 2) se o suspeito houver cometido um crime grave, de um ponto de vista razoável do policial. Não é o caso de roubo de maços de cigarro.
Sobre a oportunidade que foi dada aos policiais, nos dois casos, de testemunhar, o International Business Times afirma que isso também contraria uma decisão da Suprema Corte. Em decisão de 1992, o ministro Antonin Scalia escreveu: “Nem nos Estados Unidos, nem na Inglaterra, nunca se pensou que um suspeito sob investigação por um ‘grand jury’ tem o direito de testemunhar ou de apresentar provas exculpatórias”. A Constituição dos EUA também não requer que os promotores apresentem provas favoráveis à defesa. A única função do “grand jury” é decidir se há provas suficientes para processar criminalmente um suspeito.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 7 de dezembro de 2014, 6h23
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