quinta-feira, 6 de março de 2014

Delegado da Polícia Federal, que Secretário de Segurança Pública do Rio diz ao Jornal Português (Publico pt), o seguinte: "A polícia deve deixar de ser militar, mas isso não acontece de um dia para o outro"

José Mariano Beltrame: "A polícia deve deixar de ser militar, mas isso não acontece de um dia para o outro"

As “manifestações fragilizaram a polícia”, admite José Mariano Beltrame, o homem que comanda a segurança no Rio de Janeiro. E “a polícia errou feio” no caso Amarildo. Não se mudam 200 anos de repente, diz.



Secretário estadual de segurança do Rio de Janeiro, Beltrame é o rosto das UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) nas favelas. O projecto, iniciado em 2008, visa acabar com o poder paralelo armado — que, no Rio, são traficantes e milícia —, conquistando o território para o estado. Mas as UPP maiores e emblemáticas estão sob fogo, por ataques do tráfico ou erros da polícia.
As “manifestações fragilizaram a polícia”, admite o homem que comanda a segurança no Rio de Janeiro. E “a polícia errou feio” no caso Amarildo. Não se mudam 200 anos de repente, diz.
Entretanto, as manifestações de rua devem aumentar neste pré-Copa do Mundo, segundo os relatórios de Beltrame. Já depois desta entrevista no seu gabinete por cima da Central do Brasil, centro da cidade (numa manhã tensa, com todos os media a tentarem falar com ele por causa de uma questão de actualidade), a polícia divulgou imagens do equipamento especial para manifestações, uma espécie de robocop.
Público: Como é que a polícia se está a preparar para o pré-Copa?
José Mariano Beltrame: Temos um batalhão de grandes eventos, e já temos um batalhão de choque, que é dos mais treinados do país. Passámos por reveillons, Jogos Pan-Americanos [2007], Copa das Confederações [2013], Jornada Mundial da Juventude [com visita do papa, 2013]. Vamos fazer, sim, a Copa do Mundo.
Nos últimos meses têm acontecido uma série de ataques a UPP, mortos, desaparecimentos, tiroteios, cocktails molotov, a delegacia do Complexo Alemão sob fogo. É um sinal de que o programa está em risco de colapsar?
Absolutamente não. Você tem 36 UPP e tem problema em 2 ou 3. No Alemão e na Rocinha.
Complexo da Penha, tiros no Pavão-Pavãozinho...
Pavão-Pavãozinho, temos um incidente.
Os problemas estão a acontecer em favelas muito grandes, emblemas do programa.
Não temos problema em 36 UPP. Temos em três, quatro, que sejam cinco.
Muito emblemáticas.
Um milhão e meio de pessoas são atendidas por nove mil policiais. No Complexo do Alemão e da Penha temos 140 mil pessoas. Rocinha tem 101 mil. São comunidades que há 30 anos estavam tiranizadas, ali dentro tinha um império, não tinha poder executivo, legislativo nem judiciário. Não tenho ilusão de que isso vai parar de uma hora para outra. A gente tem problemas em áreas em torno de 100 mil habitantes. Porque, além de serem grandes, as vielas facilitam a acção de bandidos que se escondem e permanecem.
Se os ataques se multiplicam, cria-se a visão de que o estado está recuando face ao tráfico. Não fragilizam o programa?
Procuram fragilizar, mas só legitimam cada vez mais nossas acções. Vamos prender essas pessoas, se tiver de reforçar policiais vamos fazer.
O senhor sempre disse que não bastava segurança, que era preciso programa social, uma implantação a vários níveis. Que aconteceu com a UPP Social?
Não está mais comigo. Está com a secretaria de assistência social. Houve muitas trocas. Foi daqui para essa secretaria, quando mudou o secretário foi para a prefeitura.
Isso faz sentido?
Eu quero que as pessoas sejam atendidas, que tenham uma perspectiva de vida, digo e repito que não vai ser policial com um fuzil que vai melhorar a vida. O estado, o município, a União, as ONG, a sociedade, precisam fazer um gesto mostrando que estamos do lado delas. Eu não coordeno todas essas acções, já faço muito. Mas gostaria que isso acontecesse com mais velocidade, sim.
Do ponto de vista dos moradores: alguém que está, por exemplo, na Cidade de Deus, onde a luz falta sistematicamente, os serviços falham. A leitura que vai fazer das vantagens da UPP é afectada por isso.
Claro que sim. A polícia não está ali para ser repressora nem numa situação militarizada, mas para oportunizar que outras coisas aconteçam. A UPP é uma oportunidade de integrar a favela na cidade. Se não fizer isso, não vira a página da violência. A segurança fez o seu papel, está lá. Mas o cidadão precisa de muito mais.
Vamos falar do caso Amarildo, um emblema forte...
Muito ruim.
... que extravasou para além do Rio. Temos a Rocinha, favela superemblemática do Rio de Janeiro, com UPP. E é de dentro da UPP que vem este caso, com 25 policiais indiciados [por tortura e morte do ajudante de pedreiro Amarildo]. Tornou-se o símbolo de uma polícia corrupta, violenta, torturadora. Como é possível que um caso como este tenha acontecido numa UPP?
É muito ruim, um absurdo. Mas aconteceu. O que é que o estado fez? Foi lá e prendeu as pessoas [polícias]. Inclusive os oficiais. Ou vamos deixar de fazer UPP porque a polícia é corrupta? Vamos deixar os morros como estavam porque a polícia é corrupta? Temos de avançar, tirar as pessoas do estigma de um fuzil. Se uma mulher apanhava, quem julgava isso era o Nem da Rocinha [ex-chefe do tráfico, hoje preso]. Agora, a polícia errou? Errou muito feio. E está revertendo esse quadro através da major Priscila [de Azevedo, que substitui o comandante preso, major Edson Santos]. A polícia prendeu essas 25 pessoas e trabalhou dia e noite lá dentro sem fuzil, sem arma. E quantas pessoas tem lá dentro queimadas, sumidas [por acções do tráfico]? A polícia tem seus erros, chegou aqui com D. João [VI, em 1808], veio para proteger D. João e a corte, não o povo, e isso está no DNA dela.
Justamente, a questão da formação: como se reverte isso?
Faz dois anos que mudámos o currículo dos policiais, a carga horária. Agora é toda voltada para a população, eu digo, para o nosso cliente. Tem muito de sociologia, de direitos humanos, para procurar a proximidade. Temos uma polícia que se acostumou a fazer guerra, que não prestava serviço, que teve um secretário que pagava para quem mais produzia auto-de-resistência. Como se reverte isso? Com formação, e está acontecendo. As turmas a partir de Maio já têm o novo currículo. Infelizmente não vamos colher esses frutos agora, mas tenho a certeza de que essas coisas vão mudar, como na Rocinha já estão mudando e nas UPP mais antigas, menores, estão muito mais consolidadas. Isto é uma conquista diária do policial. Só que junto com esse policial tem aquele que veio com D. João.
Temos de fazer, correr o risco. E se acontecerem os casos Amarildo, punir e botar para a rua.
Quando em Julho entrevistei o coronel Ibis [então responsável pela nova formação de polícias], ele defendeu que a polícia militar não devia ser militar. O que acha?
Concordo que podíamos ter uma só polícia.
Então porque é que a polícia continua a ser militar?
Porque são 200 anos com estes vícios. Isso tem de acontecer, e vai acontecer, mas a própria polícia precisa de amadurecer. Se você der uma caneta [gíria de futebol: lançar a bola entre as pernas do adversário] não consegue. Essas polícias [civil e militar] precisam de experimentar integração, e ver que juntas são mais fortes. Mudar 200 anos não é obra para um ou dois secretários.
Mas defende que a PM devia deixar de ser PM?
Defendo. É um processo que tem de ser amadurecido pelas instituições policiais, pelos sindicatos, para que vejam que a maioria das polícias do mundo são uma só. Botar isso num decreto, e fazer com que segunda-feira funcione, movimentaria um caos no país. Mas sou absolutamente favorável.
A caveira como emblema do Bope [tropa de elite, protagonista do filme com o mesmo nome]: como é possível que uma polícia possa ter aquela caveira?
É uma polícia criada  há 30 ou 40 anos, e é um símbolo que se criou no Rio de Janeiro, algo muito forte no Bope. Acho o Bope a melhor tropa de assalto do mundo. Claro que foi muito glamurizado, essas coisas não precisaria. E o Bope a cada dia reduz suas acções. A cada lugar que a pacificação chega é um lugar a menos para o Bope. A tendência é que fique cada vez mais aquartelado, só saindo em muito conflito. O que estamos fazendo é acabar as áreas de conflito. Porque o Rio de Janeiro viveu 30 anos de guerra.
Mesmo assim, em Junho tivemos aquela acção do Bope no complexo de favelas da Maré [dez moradores mortos] que foi desastrosa para a polícia como um todo. Aconteceu num contexto de levantamento na rua que deu uma expressão muito grande ao caso.
Inclusive tivemos um policial do Bope morto. Isso que o Bope fez, fazia semanalmente, não havia critério para tirar o Bope do batalhão. Hoje tem. Aconteceu aquele incidente, os policiais estão respondendo por isso. Possivelmente dois vão perder o emprego. O nosso papel é trocar a roda do trem com o trem andando. Não posso desligar a polícia e fazer outra. As pessoas que estão caminhando na rua não querem saber. Querem ir para casa com segurança.
Hoje seria impensável a glamurização do Bope como no “Tropa de Elite” porque a relação da classe média com a polícia parece ter mudado muito em 2013. A classe média que foi para a rua e levou com gás: todo esse quadro criou uma inflexão.
As manifestações fragilizaram essa relação, não tenho dúvida. Mas também passaram do ponto. A polícia não pode ficar omissa e não pode se exceder. Se a polícia age, ela é corrupta, excessiva. Se ela não age, está prevaricando. No meio de um movimento caótico, sem liderança, que reivindica 15, 20 coisas, como você vai trabalhar?
A polícia foi completamente apanhada de surpresa pelas manifestações?
Todos nós. Porque nunca se viram manifestações do jeito que aconteceram. A polícia foi apanhada de surpresa em todos os lugares.
O desaparecimento de Amarildo não foi uma excepção. Os homicídios descem mas os desaparecidos sobem. Nos últimos dez anos, o número de desaparecidos no Rio de Janeiro aumentou quase 30%, enquanto o número de homicídio caiu 50%. Nas favelas com UPP, nas 18 cujos números estão disponíveis, o número de desaparecidos aumentou 56%. Não se pode concluir daqui que o número de homicídios cai à custa dos desaparecidos?
Não. Primeiro, a gente lê os homicídios pelos registros. Quando uma pessoa morre, dificilmente alguém não faz registro. No desaparecimento, o que acontece? A pessoa desaparece, durante cinco dias é dita desaparecida, depois começa uma investigação. E 70 ou 75% dos desaparecidos retornam. São doentes, alcoólatras, dependentes químicos, têm problemas com a família.. Eles reaparecem, só que não é dada baixa na delegacia. Isso foi uma pesquisa que fizemos.
Mas que factor pode explicar o aumento de desaparecidos nas favelas com UPP?
Aumentou muito o número de ocorrências policiais. Porquê? Porque a pessoa pode sair do morro e ir na delegacia dizer: o meu marido me bateu. O desaparecido pode ser a mesma coisa. Antes, a pessoa não ia fazer o registo.
É uma grande quantidade de gente desaparecida.
É como um armário. Agora se abriu, é público. Se olhar o número de estupro, aumentou. O número de lesão contra mulher aumentou. Tem registro de furto de telefone. De posto bancário. Antes, se o "Nem matasse o Amarildo", eu não ia estar aqui dando explicação. Quantos Amarildos tem no Rio de Janeiro queimados no forno de microondas [técnica do tráfico para se desfazer de corpos, colocando-os dentro de pneus, depois incendiados]? O Amarildo foi muito ruim, mas junto com essa história tem muito de positivo. Todos os homicídios que ocorreram na Rocinha depois da pacificação foram elucidados.
O que aconteceu com a UPP da Maré? Porque tem vindo a ser adiada?
Porque a Maré não é trivial. É um lugar onde tem as três facções criminosas, onde temos de fazer acções em três momentos. E isso envolve 1500 homens.
Estava prevista. O que aconteceu? A polícia sentiu que não tinha condições para avançar?
Você faz um planejamento. Aí começa a ver que incidências criminais ficam importantes em determinados lugares. Não posso excluir as pessoas da Baixada [Fluminense], de Niterói [zonas até agora não cobertas por UPP]. Então o que a gente faz? Alguns concertos no planejamento em cima da mancha criminal.
O tráfico na Maré reforçou-se?
Hoje tem bastante gente lá. Não vai ser uma operação fácil.
O que vai acontecer na Baixada? Vão fazer quantas UPP? Li quatro ou cinco, isso não é certo?
Não. Vamos fazer UPP na Baixada, mas nunca falo [quantas] para não mexer com a esperança das pessoas.
Esse ano?
Esse ano.
Até à Copa?
Algumas. Outras, depois. Mas vamos fazer. Baixada e São Gonçalo [depois de Niterói].
O recente caso da milícia de rapazes que prendeu a um poste o jovem [mulato, por suspeita de que ele roubava]: isso não é um fracasso de uma política de segurança, uma imagem do tempo da escravatura em pleno centro do Rio de Janeiro?
Acho que a perspectiva da pergunta está errada. Não é um fracasso da polícia.
Eu disse de uma política de segurança.
Também não. É um fracasso de muito mais coisas. Quanto acontece um facto destes, as pessoas vêem só a questão policial. Mas o que promove isso? A droga, que entra pela nossa fronteira; as armas, que entram pela nossa fronteira; a munição, que entra pela nossa fronteira; as ordens que vêm de dentro dos presídios para que pessoas barbarizem a cidade; as próprias UPP; o menor, que hoje tem uma lei especial, muito moderna, positiva, mas que infelizmente não surte efeitos; e ainda uma epidemia de crack. Essas seis coisas falham e aí vem o fracasso de uma política de segurança.
No caso do rapaz no poste, estamos a falar de uma milícia de moradores do Flamengo. Não de usuários de crack, nem de traficantes, mas de classe média.
O facto em si é absurdo. Talvez não tivesse ocorrido se algum desses [factores que enumerou] não acontecesse. O problema é que as pessoas querem a polícia, a polícia e a polícia. O facto de fazerem justiça pelas próprias mãos, sem dúvida, é uma barbárie. Acto que a gente repudia. Essas pessoas estão identificadas, alguns já estão presos e nós estamos terminando de montar um policiamento específico para aquela área do Flamengo.

Fonte: Publico pt

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