quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Desmilitarização e reforma do modelo policial


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Brasil - Le Monde Diplomatique -  [Luiz Eduardo Soares] A aprovação da PEC 51 é decisiva para evitar sobretudo a brutalidade policial letal contra os mais vulneráveis e a criminalização da pobreza, processos indissociáveis da intensificação do racismo. A desmilitarização não será suficientes para que se alcancem esses objetivos, mas constituem passos indispensáveis

O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) acaba de apresentar a PEC 51, cuja finalidade é transformar a arquitetura institucional da segurança pública, um legado da ditadura que permaneceu intocado nos 25 anos de vigência da Constituição, impedindo a democratização da área e contribuindo para o aprofundamento das desigualdades sociais e a intensificação do racismo.
Suas principais propostas são: (1) O papel das polícias é garantir direitos dos cidadãos. (2) Desmilitarização: as PMs deixam de existir como tais porque perdem o caráter militar, dado pelo vínculo orgânico com o Exército (enquanto força reserva) e pelo espelhamento organizacional. (3) Toda instituição policial passa a ordenar-se em carreira única. (4) Toda polícia deve realizar o ciclo completo do trabalho policial (preventivo, ostensivo, investigativo). (5) A decisão sobre o formato das polícias operando nos estados (e nos municípios) cabe aos estados. O Brasil é diverso e o federalismo deve ser observado. (6) A escolha dos estados restringe-se à aplicação de dois critérios e suas combinações: circunscrições territoriais e tipos criminais. Exemplo: um estado poderia criar polícias (sempre de ciclo completo) municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de pequeno potencial ofensivo; uma polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra o crime organizado. (7) As responsabilidades da União são expandidas, em várias áreas, sobretudo na educação, assumindo a atribuição de supervisionar e regulamentar a formação policial. (8) A PEC propõe avanços também no controle externo e na participação da sociedade, o que é decisivo para alterar o padrão de relacionamento das instituições policiais com as populações mais vulneráveis, atualmente marcado pela brutalidade policial letal, que atingiu patamares inqualificáveis. (9) Os direitos trabalhistas dos profissionais da segurança serão plenamente respeitados. A intenção é que os policiais sejam mais valorizados. (10) A transição prevista será gradual, transparente, com a participação da sociedade.
A aprovação da PEC 51 me parece decisiva para evitar sobretudo a brutalidade policial letal contra os mais vulneráveis e a criminalização da pobreza, processos indissociáveis da intensificação do racismo. A desmilitarização e a mudança do modelo policial não serão suficientes para que se alcancem esses objetivos, mas constituem passos indispensáveis. Explico os motivos, examinando o salto recente do encarceramento. O crescimento vertiginoso da população penitenciária no Brasil a partir de 2002 e 2003, seu perfil social e de cor tão marcado, assim como a perversa seleção dos crimes privilegiados pelo foco repressivo devem-se prioritariamente à arquitetura institucional da segurança pública, em especial à forma de organização das polícias, que dividem entre si o ciclo de trabalho, e ao caráter militar da polícia ostensiva. Devem-se também às políticas de segurança adotadas e não seriam possíveis, no modo como transcorrem, se não vigorasse a desastrosa Lei de Drogas. Observe-se que a arquitetura institucional inscreve-se no campo mais abrangente da justiça criminal, o que, por sua vez, significa que o funcionamento das polícias, estruturadas nos termos ditados pelo modelo constitucionalmente estipulado, produz resultados na dupla interação: com as políticas criminais e com a linha de montagem que conecta Polícia Civil, Ministério Público, Justiça e sistema penitenciário. Pretendo demonstrar que a falência do sistema investigativo e a inépcia preventiva – entre cujos efeitos se incluem a explosão de encarceramentos e seu viés racista e classista – são também os principais responsáveis pela insegurança, em suas duas manifestações mais dramáticas: a explosão de homicídios dolosos e da brutalidade policial letal.
Há pressupostos e implicações teóricas em minha hipótese que devem ser explicitados, assim como uma interlocução subjacente com a tese popularizada por Loïc Wacquant, em sua influente obra As prisões da miséria (Jorge Zahar Editora, 2001). O autor sugere conexões funcionais entre a adoção do receituário neoliberal nos Estados Unidos e o aumento drástico das taxas de encarceramento, sobretudo de pobres e negros. O neoliberalismo, ao promover o crescimento do desemprego, o esvaziamento de políticas sociais e a desmontagem de garantias individuais, exigiria a criminalização da pobreza para aplacar as demandas populares e evitar a eventual tradução política da exclusão em protagonismo crítico ou insurgente. Se o exército de reserva da força de trabalho não é mais necessário, dadas as peculiaridades do sistema econômico globalizado que transfere a exploração do trabalho para países dependentes, ou apresenta riscos de converter-se em fonte de instabilidade política, torna-se conveniente canalizar contingentes numerosos dos descartáveis para o sistema penitenciário. Não por acaso, os Estados Unidos viriam a produzir a maior população penitenciária do mundo. Certo ou errado para o caso norte-americano, o diagnóstico não se aplica ao Brasil. Entre nós, a epidemia do encarceramento coincide com os governos do PT, que poderiam merecer todo tipo de crítica, menos a de serem neoliberais, promotores de desemprego e do desmonte de políticas e garantias sociais. Pelo contrário, não resta dúvida quanto às virtudes sociais dos mandatos do presidente Lula, durante os quais houve redução das desigualdades e ampliação do emprego e da renda. Contudo, nunca antes na história deste país se prendeu tanto. Atribuo a expansão do encarceramento à combinação entre as estruturas organizacionais das polícias, a adoção de políticas de segurança que privilegiaram determinados focos seletivos e a vigência, seguida da potencialização discricionária da Lei de Drogas. Tudo isso em um contexto de crescimento econômico e dinamismo social que intensifica as cobranças por elevação do rendimento de todas as instituições. Para demonstrar minha tese, impõe-se um percurso argumentativo.
I. Voracidade encarceradora enviesada e os circuitos da violência letal
Entre 1980 e 2010, 1.098.675 brasileiros foram assassinados. O país convive com cerca de 50 mil homicídios dolosos por ano. A maioria das vítimas é jovem, pobre, do sexo masculino e sobretudo negra. Desse volume aterrador, apenas 8%, em média, são investigados com sucesso, segundo o Mapa da violência, do professor Julio Waiselfisz, publicado em 2012. Mas não nos precipitemos a daí deduzir que o Brasil seja o país da impunidade, como o populismo penal conservador e a esquerda punitiva costumam alardear. Pelo contrário, temos a quarta população carcerária do mundo e, provavelmente, a taxa de crescimento mais veloz. Ou seja, além de não evitar as mortes violentas intencionais e de não as investigar, o Estado brasileiro prende muito e mal. As prioridades estão trocadas. A vida não é valorizada e se abusa do encarceramento. A privação de liberdade − esse atestado de falência civilizatória −, para a qual ainda não dispomos de alternativa hábil, deveria ser o último recurso, exclusivamente para casos violentos, crimes contra a pessoa, quando o agressor representasse riscos reais para a sociedade. Hoje, temos 550 mil presos.
Entre os presos, apenas cerca de 12% cumprem pena por crimes letais. Quarenta por cento são provisórios. Dois terços dessa população, aproximadamente 367 mil, foram presos sob acusação de tráfico de drogas ou crimes contra o patrimônio. Fica patente que os crimes contra a vida, assim como as armas, não constituem prioridade. Os focos são outros: patrimônio e drogas.
II. Estruturas organizacionais e práticas seletivas
As PMs são definidas como força reserva do Exército e submetidas a um modelo organizacional concebido à sua imagem e semelhança, fortemente verticalizado e rígido. A boa forma de uma organização é aquela que melhor serve ao cumprimento de suas funções. As características organizacionais do Exército atendem à sua missão constitucional porque tornam possível o "pronto emprego", qualidade essencial às ações bélicas destinadas à defesa nacional.
A missão das polícias no Estado democrático de direito é inteiramente diferente daquela que cabe ao Exército. O dever das polícias, vale reiterar, é prover segurança aos cidadãos, garantindo o cumprimento da lei, ou seja, protegendo seus direitos e liberdades contra eventuais transgressões que os violem. O funcionamento usual das instituições policiais com presença uniformizada e ostensiva nas ruas, cujos propósitos são sobretudo preventivos, requer, dada a variedade, a complexidade e o dinamismo dos problemas a superar, os seguintes atributos: descentralização; valorização do trabalho na ponta; flexibilidade no processo decisório nos limites da legalidade, do respeito aos direitos humanos e dos princípios internacionalmente concertados que regem o uso comedido da força; plasticidade adaptativa às especificidades locais; capacidade de interlocução, liderança, mediação e diagnóstico; liberdade para adoção de iniciativas que mobilizem outros segmentos da corporação e intervenções governamentais intersetoriais. Idealmente, o(a) policial na esquina é um(a) gestor(a) da segurança em escala territorial limitada com amplo acesso à comunicação intra e extrainstitucional, de corte horizontal e transversal.1
A PM é um corpo de servidores públicos pressionado pelo governo, pela mídia e pela sociedade a trabalhar e produzir resultados, os quais deveriam ser entendidos como a provisão da garantia de direitos e a redução da criminalidade, sobretudo violenta, estabilizando e universalizando expectativas positivas relativamente à cooperação. Entretanto, resultados não são compreendidos nesses termos, seja porque se interpõe a opacidade dos valores da guerra contra o inimigo interno, seja porque a máquina policial apenas avança para onde aponta seu nariz, por assim dizer. Em outras palavras, a máquina, para produzir, respondendo à pressão externa (crescente quando o país cresce e a sociedade intensifica cobranças, levando os governos a exigir mais produtividade de seus aparatos), precisa mover-se, isto é, funcionar, e só o faz segundo as possibilidades oferecidas por seus mecanismos, os quais operam em sintonia com o repertório proporcionado pela tradição corporativa, repassado nas interações cotidianas, nos comandos e no processo de socialização, o qual incorpora e transcende a formação técnica.
A máquina funciona determinando às equipes de subalternos nas ruas, pelos canais hierárquicos do comando, ao longo dos turnos de trabalho, trajetos de patrulhamento, em cujo âmbito se realiza a vigilância. A operacionalização depende da subserviência do funcionário que atua na ponta, do qual se exige renúncia à dimensão profissional de seu ofício, à liberdade de pensar, diagnosticar, avaliar, interagir para conhecer, planejar, decidir, mobilizar recursos multissetoriais, antecipando-se aos problemas identificados como prioritários. A inexorável discricionariedade da função policial será exercida nos limites impostos pela abdicação do pensamento e do protagonismo profissional. Será reduzida ao arbítrio, porque descarnada da finalidade superior, que daria sentido à sua ação. O que restará ao policial militar na ponta, na rua? O que caberá ao soldado? Varrer a rua com os olhos e a audição, classificando personagens e biotipos, gestos e linguagens corporais, figurinos e vocabulários, orientado pelo imperativo de funcionar, produzir, o que significa, para a PM, prender. Ad hoc, no varejo do cotidiano, só resta ao soldado procurar o flagrante, flagrar a ocorrência, capturar o suspeito. Os grupos sociais mais vulneráveis serão também, no quadro maior das desigualdades brasileiras e do racismo estrutural, os mais vulneráveis à escolha dos policiais, porque eles projetarão preconceitos no exercício de sua vigilância. Nos territórios vulneráveis, a tendência será atuar como tropa de ocupação e enfrentar inimigos. Assim se explicam os milhares de execuções extrajudiciais sob o título cínico de autos de resistência, abençoados pelo MP sem investigação e arquivados com o aval cúmplice da Justiça, ante a omissão da mídia e de parte da sociedade.
Por fim, o flagrante exige um tipo penal: na ausência da antiga vadiagem, está à mão a Lei de Drogas (e não só). Ou seja, pressionar a PM a funcionar equivale a lhe cobrar resultados, os quais serão interpretados não como redução da violência ou resolução de problemas, mas como efetividade de sua prática, ou seja, como produtividade confundida com prisões, contabilizada em prisões, aquelas mais prováveis pelo método disponível, o flagrante. O personagem, o biotipo, o rótulo, o figurino, o território, a fala, a vigilância no varejo das ruas, a ação randômica em busca do flagra: não é preciso grandes articulações funcionais entre macroeconomia e políticas sociais, a proporcionar sobrevida ao capitalismo. Basta a máquina funcionar. Ela não investiga, porque a fratura do ciclo, prevista no modelo, não permite. Ela está condenada a enxergar o que se vê na deambulação vigilante, em busca dos personagens previsíveis, que confirmem o estereótipo e estejam nas ruas, mostrem-se acessíveis. Ela vai à caça do personagem socialmente vulnerável, que comete determinados tipos de delito, captáveis pelo radar do policiamento ostensivo.
Claro que a política criminal é decisiva, assim como a política de segurança, com suas escolhas de fundo, mas é indiscutível que cumprem papel determinante a militarização e a ruptura do ciclo do trabalho policial. A divisão do ciclo, no contexto da cultura corporativa belicista – herdada da ditadura e do autoritarismo onipresente na história brasileira –, cria uma polícia exclusivamente ostensiva, cuja natureza militar – fortemente centralizada e hierarquizada – inibe o pensamento na ponta, obsta a valorização do policial e de sua autonomia profissional, e mutila a responsabilidade do agente, degradando a discricionariedade hermenêutica em arbitrariedade subjetiva. A aprovação da PEC 51 não resolverá todos os problemas. Longe disso. Entretanto, pelos motivos expostos, constitui condição sine qua nonpara que eles comecem a ser enfrentados.
Luiz Eduardo Soares é secretário municipal de Assistência Social e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (RJ) e professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Tem pós-doutorado em Filosofia Política e foi secretário nacional de Segurança Pública (2003). É autor, entre outros livros, de Elite da tropa, com André Batista e Rodrigo Pimentel (Objetiva, 2006).
Ilustração: Daniel Kondo

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