No dia 16 de julho, enquanto a população do Rio de Janeiro tomava as ruas do Centro da cidade pedindo o fim da corrupção, um pequeno grupo de manifestantes se concentrava na entrada da favela da Rocinha, na zona sul, com cartazes improvisados em cartolina, com a pergunta: “Cadê o Amarildo?”. A cena foi registrada por curiosos e postada nas redes sociais. Em poucos dias, o suposto assassinato do pedreiro Amarildo de Souza, por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, onde ele morava, ganhou repercussão internacional.
Já em Goiânia, a dona de casa Maria das Graças Soares investiga quase que sozinha, há oito anos, o sumiço do seu filho, Murilo Soares, uma das 39 pessoas que desapareceram após serem abordadas por policiais militares na região metropolitana da cidade. Após incontáveis relatos como os citados agora, Organizações de Direitos Humanos buscam nas lembranças da ditadura militar um termo para expressar o preocupante e atual retrato da violência no Brasil: a militarização da polícia, relacionada diretamente com os casos de desaparecimento de pessoas.
A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) realizou na última terça-feira uma audiência pública, marcada pelo deputado estadual Marcelo Freixo (Psol), para debater o tema “Os Desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro”. No encontro, foram divulgadas as estatísticas oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP) referentes a pessoas desaparecidas. Pelo órgão, do ano de 2007 até maio de 2013, foram registrados somente no Rio de Janeiro cerca de 35 mil casos, a maioria deles não teve as causas esclarecidas. Segundo o sociólogo Fábio Araújo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é comum no Brasil os homicídios disfarçados de desaparecimento, geralmente cometidos por militares, até em parceria com traficantes. Fábio estuda o tema há muitos anos e em 2007 escreveu uma dissertação sobre a Chacina de Acari, que matou 11 jovens em 1990 e seus corpos nunca foram encontrados.
Para dar continuidade aos debates e trabalhos iniciados na audiência pública da Alerj, a ONG Rio de Paz lançou esta semana uma campanha pelas suas redes sociais e na mídia, incentivando a população a denunciar os casos de violência cometidos por PMs em comunidades cariocas. Em apenas três dias, a ONG recebeu vários comunicados anônimos e um deles já está sendo investigado pela 42ª.DP (Recreio dos Bandeirantes), sobre a existência de um cemitério clandestino usado constantemente por policiais militares, na zona oeste.
“O caso Amarildo é emblemático e deu o pontapé para a população mostrar o quanto está insatisfeita com a atuação truculenta da nossa Polícia Militar, principalmente em áreas de comunidades pacificadas. A impunidade tem que acabar, através de novas políticas públicas voltadas diretamente para a proteção da população. Esperamos que agora seja possível abrir os porões da corporação policial, trancados desde o regime militar, para solucionar de vez tantos crimes encobertos e findar com esse processo de violência pela violência”, disse Antônio Carlos Costa, fundador e presidente do Rio de Paz.
Na visão do sociólogo Fábio Araújo, o primeiro ponto paralelo entre os fatos relatados pelas vítimas da ditadura militar que o Brasil viveu na década de 60 e o recente caso Amarildo, pode ser observado na angulação imposta na ditadura, “onde o Estado exceção estava instaurado”. No caso registrado na Rocinha, o contexto não é de uma ditadura declarada, mas “o direito parece não possuir normatividade, ou seja, embora os direitos constitucionais continuem em vigor, eles são constantemente violados pelo Estado em nome de supostas emergências”, explica Fábio.
O sociólogo diz que, no momento, a instauração de um estado de emergência tem relação com a mercantilização da cidade, através dos megaeventos. “E o desaparecimento do Amarildo aconteceu nesse contexto de militarização dos territórios pacificados e mostrou a fragilidade das UPPs, mostrou que a cultura da violência que sempre esteve presente na polícia militar continua forte. O uso da violência policial para manutenção do controle social e da ordem durante as manifestações está na agenda política das ruas e dos protestos. A violência policial tem sido a linguagem que o poder tem adotado para lidar com os conflitos sociais e os protestos em curso. A desmilitarização da polícia e a guerra às drogas estão na pauta política do momento”, ressaltou ele.
O caso Amarildo conseguiu mobilizar não só a população carioca, mas atravessou as fronteiras e comoveu outros Estados e países, que se uniram ao grito de “Justiça” dado pela família do pedreiro da Rocinha. Fábio observa que o suposto assassinato de Amarildo ganhou força nos movimentos que estão nas ruas protestando e chegou ao exterior pela imprensa, transformando-se em mais um caso emblemático de desaparecimento forçado. “O caso Amarildo tem sido uma boa oportunidade para levantar a questão na relação entre desaparecimento e homicídios. Nos últimos anos, tem se observado uma diminuição dos registros de autos de resistência e homicídios, por outro lado, os registros de desaparecimento não param de crescer. O caso Amarildo não é uma exceção, a conjuntura política lhe foi muito favorável e a coragem da família em levar o caso adiante, fundamental”, comentou o sociólogo.
Com relação aos dados do ISP referentes às pessoas desaparecidas no Rio, eles não oferecem uma clareza para a compreensão do fenômeno, segundo Fábio. O sociólogo explica que há disponíveis somente informações muito genéricas. “Por exemplo, de 1991 a maio de 2013 foram registrados 91.807. Os próprios registros de ocorrência não dizem muita coisa, são documentos muito mal preenchidos. Há muitas questões para se colocar sobre esses dados. O que significam esses desaparecimentos? Em que circunstâncias? Em que medida envolve a participação de agentes estatais?”, destaca ele. Fábio diz que o caso do menino Juan, ocorrido no ano de 2011, no município de Mesquita, na Baixada Fluminense, poderia ter sido mais um a figurar nas estatísticas de desaparecimento e permanecer escondido em um dos muitos cemitérios clandestinos da cidade, como ocorre em diversas outras situações.
O sociólogo dá outros exemplos de situações que poderia constar nas estatísticas do ISP, pelas evidências criminais detalhadas pela própria Justiça. “No dia 09 de outubro de 2007, a imprensa noticiou que investigadores da 62ª Delegacia de Polícia haviam localizado um cemitério clandestino em um terreno na esquina das ruas Roberto Silveira e Ataulfo Alves, na Favela Santa Lúcia, em Imbariê, Duque de Caxias, Baixada Fluminense. A notícia informava ainda que dois corpos haviam sido desenterrados e os policiais consideravam a possibilidade de um dos corpos ser de um adolescente desaparecido há três semanas. Cogitava-se ainda a possibilidade de que outros seis corpos estivessem enterrados no mesmo cemitério clandestino.
Notícias como esta não são raras e incomuns. No site do Ministério da Justiça constam alguns registros desse tipo de desaparecimento. No relato das circunstâncias do desaparecimento constam registros como: O adolescente estava numa casa em (nome do bairro), em Vilar dos Teles, quando ele e mais quatro adolescentes foram levados pela polícia. Até hoje não teve nenhuma notícia dele; Saiu de moto com dois amigos. Segundo informações, eles passaram por um grupo de extermínio e desapareceram; Se encontrava na Avenida Paulo de Frontin quando foi levado por homens a paisana que se diziam policiais”, enumerou Fábio Araújo.
Em contato direto e constante com as famílias das vítimas, o sociólogo avalia que a prática de ocultar ou destruir corpos, flagradas no fenômeno da militarização da política, é vivida pelos entes mais próximos como uma morte que não tem fim, pois não se sabe o que aconteceu com a pessoa. Os familiares convivem permanentemente com a dúvida, com a incerteza. “Segundo os relatos que tive acesso, a prática de desaparecer/destruir os corpos das vítimas é muito comum, assim como é comum a existência de cemitérios clandestinos. Em relação aos familiares, estes ainda se deparam com o descaso e a falta de importância com que seus casos são tratados pelas autoridades públicas responsáveis por investigar. É comum no curso do caso os familiares transformarem de familiares de vítima a réu, como vem ocorrendo no caso Amarildo”, disse.
Não é de hoje que o brasileiro tenta decifrar o termo “militarização da polícia”, assim como as suas mais temíveis consequências durante o regime militar e nos anos que sucederam ao fato histórico. O Jornal do Brasil divulgou pela primeira vez essa expressão no dia 21 de agosto de 1979, na seção “Carta do leitor”, que apresentava uma crítica popular sobre o assunto, evidenciando a insatisfação da população quanto ao fenômeno. No dia 8 de novembro de 1981, o colunista Paulo Sérgio Pinheiro volta com o tema nas páginas do jornal, divulgando um rico artigo intitulado “Polícia e crise política – O caso das Polícias Militares”. Daí em diante, o Jornal do Brasil divulgou várias reportagens sobre a militarização da polícia no contexto nacional de cada época.
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