quarta-feira, 6 de julho de 2011

Jobim e a (des)inteligência militar Declaração do ministro da Defesa fragiliza a necessária supremacia do poder civil sobre as Forças Armadas

CARLOS FICO
A discussão sobre a abertura dos "arquivos secretos da ditadura" por vezes parte de alguns pressupostos equivocados. Por exemplo, já existem muitos arquivos disponíveis para consulta. Na verdade, entre os países que viveram ditaduras militares o Brasil é o que possui o maior acervo de documentos já abertos aos cidadãos. Estão no Arquivo Nacional, entre outros, os papéis do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Conselho de Segurança Nacional.


Tasso Marcelo/AE
Contrariando Jobim, muitos papéis da repressão devem ter sido guardados

Existem, entretanto, três arquivos muito importantes ainda fechados. Refiro-me aos documentos secretos dos antigos órgãos de inteligência militar, isto é, os que cuidavam da coleta e análise de informações nos velhos ministérios militares: o CIE (Centro de Informações do Exército), o Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha). Eram três dos principais pilares da "comunidade de informações" responsável pela repressão. Esses órgãos eram importantes porque não cuidavam apenas de informações (como o SNI) ou de "operações de segurança" (prisões, interrogatórios): eram mistos, faziam de tudo. Por isso, seus documentos sigilosos eram os mais esperados pelo seu potencial revelador. Por exemplo, se existe algum registro sobre o que ocorreu na guerrilha do Araguaia, ele está no acervo do CIE.


Os papéis da Aeronáutica já foram enviados ao Arquivo Nacional, mas é visível que foram expurgados previamente. Os comandantes militares do Exército e da Marinha negaceiam. Não transferem os documentos para o Arquivo Nacional, mas também não dizem, com todas as letras, o que aconteceu.


Nesse sentido, foi bastante infeliz a recente declaração do ministro da Defesa, Nelson Jobim, segundo a qual não haveria problema em aprovar o fim do chamado "sigilo eterno" de documentos ultrassecretos - através da Lei de Acesso à Informação que se encontra no Congresso Nacional - porque os documentos da ditadura "já desapareceram".


A declaração é desastrada por várias razões. Em primeiro lugar, ela referenda a posição acovardada dos comandantes militares que temem encarar o passado - algo que prejudica as próprias Forças Armadas brasileiras que não conseguem se livrar desse passivo. Muitos jovens oficiais - que frequentemente entrevisto - têm posição contrária.


Pelo que diz Jobim, o Exército e a Marinha destruíram seus acervos. O ministro afirma que isso foi feito "à época". Pessoalmente, acho muito difícil que os antigos ministros militares da ditadura tenham destruído esses documentos: além das informações da repressão, os arquivos continham dados sobre a segurança nacional. A destruição desse tipo de documento é um ato muito grave.


Na verdade, um crime. Quando uma autoridade destrói documentos, deve produzir uma ata na qual registra o que foi descartado, quando o foi, o motivo, etc. Estaria Nelson Jobim acusando os antigos oficias-generais de terem praticado esse crime?


A declaração do ministro também é infeliz porque expressa certa desinteligência, pois existem muitos documentos oriundos do período do regime militar que não desapareceram. A produção de documentos sigilosos durante a ditadura militar era tão grande que seria muito difícil destruir tudo. Sempre se encontra algo, mesmo em outros acervos. Por exemplo, há documentos do CIE nos acervos do SNI. Esses órgãos trocavam papéis freneticamente.


A aprovação da Lei de Acesso à Informação contemplando o fim do sigilo eterno será um passo muito importante e uma vitória da sociedade - que pressionou e está prestes a derrotar as posições retrógradas de Sarney e de Collor, adeptos da renovação indefinida do sigilo dos documentos ultrassecretos. Mas precisamos avançar. Aqui, mais uma vez, esbarramos na instituição mais frágil da democracia brasileira: o Congresso Nacional. Além da garantia de acesso às informações, é preciso que parlamentares acompanhem, como em outros países, a produção de decisões e documentos "sensíveis". Não se trata de divulgar o conteúdo das decisões, mas de saber, por exemplo, a quantidade de documentos ultrassecretos produzidos em um dado ano.


Por isso, não tenho muita esperança em relação à divulgação de papéis mais críticos, isto é, os documentos secretos e ultrassecretos. Como, no Brasil, ainda não temos um efetivo controle civil sobre as Forças Armadas, a decisão sobre abrir ou não os arquivos depende dos comandantes militares, independentemente do que disser a nova Lei de Acesso à Informação. Nesse sentido, a declaração de Jobim fragiliza a necessária supremacia do poder civil sobre os militares.


CARLOS FICO É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UFRJ E AUTOR DE COMO ELES AGIAM: OS SUBTERRÂNEOS DA DITADURA MILITAR (RECORD)

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