O Decreto 7.037/2009 aprovou o Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNHD-3, que busca traçar uma política nacional na área. Esse Programa contém aspectos diversificados. Por exemplo, a elogiável proposta de “Fortalecer a legislação e a fiscalização para evitar a contaminação dos alimentos e danos à saúde e ao meio ambiente causados pelos agrotóxicos” (Diretriz 4, Objetivo estratégico II, letra “e”). Outros polêmicos, como a Diretriz 22, que trata da garantia ao direito à comunicação democrática, que inclusive já sofreu revogação parcial.
Aqui será analisada a Diretriz 17, que trata da “Promoção de sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo, para o conhecimento, a garantia e a defesa dos direitos”. E dentro deste item, que não é pequeno, o foco ficará limitado ao Objetivo Estratégico VI, que trata do “Acesso à justiça no campo e na cidade”.
Antes da análise, um esclarecimento. Conheço o problema na teoria e na prática. Escrevi em no dia 4 de janeiro de 2009 sobre a função social e a perda de imóveis urbanos, concluindo pela possibilidade do Poder Público arrecadar imóveis abandonados. Como juiz federal, decidi a primeira invasão em Curitiba, PR, 1981 (caso Vila Formosa), tendo na ocasião ido pessoalmente à prefeitura e acertado com o prefeito um acordo para alojar centenas de invasores, sem qualquer risco ou arbitrariedade. Posteriormente, declarei nulos os títulos de domínio (centro da discussão), sendo a sentença reformada no TRF-4 e restabelecida no STJ.
Portanto, sei perfeitamente a importância social e ambiental da propriedade, os problemas de desocupações feitas sem cautelas, as complexas situações de loteamentos irregulares na periferia das grandes cidades e o que mais envolve o assunto. Mas sei também que o país conta com um Poder Judiciário que goza de independência desde a Constituição de 1824 (art. 151) e que ele, com todos os seus problemas, é a última garantia do cidadão e da democracia.
Vejamos o que se dispõe nas ações programáticas do Objetivo Estratégico VI:
a) Assegurar a criação de marco legal para a prevenção e mediação de conflitos fundiários urbanos, garantindo o devido processo legal e a função social da propriedade.
O item “a” pretende criar um marco legal, o que certamente significa uma lei para a prevenção e mediação dos conflitos urbanos. Prevenir, aí, significa evitar o conflito. Mediar quer dizer que um terceiro tentará aproximar, facilitar, auxiliar na solução do conflito, sem nada decidir a respeito, pois a solução será dada pelos próprios envolvidos.
Assim, o que se pressupõe é que um projeto de lei será apresentado para prevenir um conflito prestes a existir ou tentar solucionar um já ocorrido. A iniciativa é boa, exceto se o projeto tornar obrigatório às partes passarem pela mediação. Aí o ofendido terá que esperar uma conversação, que nesse tipo de caso certamente durará longo tempo, sem poder ingressar com qualquer ação.
b) Propor projeto de lei voltado a regulamentar o cumprimento de mandados de reintegração de posse ou correlatos, garantindo a observância do respeito aos Direitos Humanos.
Aqui a proposta soa estranha. Não me consta que ordem judicial necessite de regulamentação. Será necessário interpretar um mandado? E, se for necessário, existirão interpretações divergentes? Como será o regulamento que vier a ser feito pelo Poder Executivo? Poderá condicionar a execução a requisitos ao seu gosto? Aumentará a burocracia? O precedente não poderá originar outros regulamentos, por exemplo, a ordem de prisão do prestador de alimentos? Evidentemente tal regulamentação representa perigoso precedente.
c) Promover o diálogo com o Poder Judiciário para a elaboração de procedimento para o enfrentamento de casos de conflitos fundiários coletivos urbanos e rurais.
Esta é uma iniciativa incomum, mas positiva. O Judiciário não é Poder destinado a consultas ou deliberações, mas sim a decidir. Todavia, nada impede que haja tratativas entre os Poderes, visando ao bem comum. Óbvio que o acordo das cúpulas, no Judiciário (Presidente do Tribunal ou Corregedor), não vincula os juízes em suas decisões no exercício da jurisdição.
d) Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação nas demandas de conflitos coletivos agrários e urbanos, priorizando a oitiva do Incra, institutos de terras estaduais, Ministério Público e outros órgãos públicos especializados, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos.
O subitem da letra “d”, na redação primitiva de 2009, condicionava as medidas liminares a uma audiência coletiva com os envolvidos e diversos entes públicos. Na atual redação (Decreto 7.177/2010), implícita e não explicitamente como o anterior, pretende obrigar aquele que, no campo ou na cidade, se veja privado de sua propriedade, a submeter-se a uma mediação onde serão partícipes, além das partes, o Incra, instituto de terras, MP e outros órgãos públicos especializados.
Ora, qualquer advogado com seis meses de experiência forense perceberá que a mediação com a presença dos envolvidos e de diversos órgãos, com visões nem sempre convergentes, será uma discussão que poderá durar meses, anos. Não se trata de mediação em uma questão de dívida ou de família (o que pode ser bom), mas sim em um conflito de massa. E enquanto isto nenhuma ação judicial poderá ser proposta. É flagrante o risco de eternizar-se o conflito sem que haja manifestação da Justiça. Nem no regime militar foi tomada iniciativa semelhante.
Expostas as pretensões do Objetivo VI da Diretriz 17, PNHD-3, conclui-se que ela representa sério risco à independência e autonomia do Poder Judiciário. E só ele garante a liberdade contra o arbítrio e limita a ação do Poder Público (p. ex., milhões são pagos por condenações do INSS nos Juizados Especiais Federais). Reduzi-lo em uma de suas atividades (no caso, conflitos agrários e urbanos) cria o perigo de amanhã estender-se a limitação a outras ações.
Quem duvidar, que leia a respeito do caso da juíza venezuelana Maria de Lourdes Afiuni, presa desde dezembro de 2009 por ter posto em liberdade um banqueiro, prisão considerada arbitrária pela brasileira e representante da ONU Gabriela Carina Knaul de Albuquerque e Silva, que apresentou o caso ao Conselho de Direitos Humanos da entidade.
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