quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Algum Policial Militar se habilita a responder?

EDITORIAL - IBCCRIM (BOLERIM 206)


Após um amplo debate com a sociedade brasileira, a Constituição da República de 1988 definiu que às polícias civis, dirigidas por bacharéis em direito que são os delegados de polícia estruturados em carreira, compete a função de polícia judiciária e a apuração das infrações penais (art. 144, parágrafo 4º). O mesmo dispositivo, logo adiante, atribui às polícias militares o policiamento ostensivo e de preservação da ordem pública (parágrafo 5º).

Pese o texto constitucional – que certamente não é gratuito –, ao argumento de que as polícias todas devem realizar o chamado ciclo completo de investigação, há tempos ouvimos vozes enganosas. Pede-se a supressão das reservas constitucionais, com o que poderia a lei ordinária, eventualmente, dispor que também os militares passarão a apurar crimes ocorridos na vida civil.

Tristemente pouca, nossa memória. Resultado de uma grande mobilização civil pela democratização do país, a Constituição de 1988 adverte-nos quão perigoso é atribuir a militares investigações estranhas ao seu universo próprio. Invocar indevidamente o exemplo de países de vida institucional estável – que não viveram as ditaduras que contaminaram a América Latina – não seria minimamente ilustrativo ou lúcido.

Infelizmente, as organizações militares, entre nós, nunca estiveram conformadas ao que o direito lhes reserva. Mesmo hoje, estão entre as forças que querem subtrair à ação da justiça crimes cometidos contra a humanidade. Quando erram ou falham, são também refratárias a responder perante o sistema civil de justiça criminal. Querem, ainda agora, uma justiça somente para si próprias, formada à sua feição e semelhança, negando-se a prestar contas à justiça que serve a todos, indistintamente. Paradoxalmente, no entanto, reclamam investigar crimes não militares, interrogando e investigando civis, fechadas em seus quartéis.

Ora, uma instituição militar não é estruturada a partir da formação jurídica de seus quadros. Não é voltada à cultura do direito enquanto um valor em si mesmo. Aliás, o quartel é uma fortaleza fechada sobre si própria que existe se e enquanto for inexpugnável. Tudo, nele, é a mais precisa antinomia em face da ideia publicística que funda a construção histórica do direito processual. Estamos, pois, diante de conceitos absolutamente antagônicos.

Não bastasse o argumento falso da completude desse ciclo – entre nós, mais que completo, sempre foi excessivo e desmedido –, e não bastasse sensibilizarem-se mentes equivocadas e perigosamente descomprometidas do mundo acadêmico brasileiro, ainda agora surge a invocação de funções de investigação também às Forças Armadas. Ou seja, querem institucionalizar o espetáculo de tanques de guerra subindo morros, de generais contaminando-se com a corrupção das fronteiras, vigiando periferias e fazendo, outra vez, guerra contra o próprio povo.

Pior ainda que militares usurpando funções civis é a tentativa de civis construírem inadvertidas corporações militarizadas. Para coroar todo esse repertório, multiplicam-se pelo Brasil as chamadas guardas municipais que, de civis, têm meramente o nome, eis que todas também fortemente militarizadas. Grande parte dos quadros e rotinas que formam tais guardas – que ambicionam tudo, menos guardar – têm origem na vida militar. Há municípios pagando soldos extras a policiais militares – aluguel de armas? – para execução de suas vontades de ocasião. Avolumam-se casos em que guardas civis emparedam moradores de rua, submetendo-os a revistas vexatórias, em via pública. Meses atrás, uma atuação esdrúxula de uma dessas guardas civis ocasionou a morte de uma jovem na populosa favela de Heliópolis, em São Paulo. Seguiu-se compreensível revolta da população por atuação assim grotesca do Estado. Repare-se que as tais guardas municipais, todavia, não se submetem à corregedoria externa do Judiciário e do Ministério Público, como ocorre com as polícias civis, de sorte que seus desmandos sequer têm sítios e autoridades vigilantes que os possam investigar, de fora para dentro.

E já que todos criam polícias, também os agentes prisionais querem uma exclusiva, para investigar a seu prazer a si próprios, seus presos e respectivos familiares, como se fazer uma polícia – isto é, encontrar homens qualificados, treiná-los, acompanhá-los e corrigi-los, se necessário – fosse coisa simples e fácil que pudesse, inclusive, ser realizada atrás do balcão do Estado. Enquanto isso, por todo o País, espalham-se presídios sob administração militar direta, o que constitui desvio e pulverização, entre nós, da experiência de Guantánamo.

Por trás de todas essas propostas esdrúxulas, o movimento subjacente é nítido. Trata-se de militarizar a própria ideia de segurança pública, reclamando-a da cidadania que é seu espaço próprio para confiná-la nos quartéis, batalhões e dependências tais. Trata-se, antes de tudo, de dizer que a segurança pública é coisa militar porque, em última análise, vivemos uma guerra e, como sabemos, a guerra é precisamente a situação em que os antigos diziam não haver direito. Invoca-se a militarização porque se invoca a guerra. Invoca-se a guerra porque se invoca a excepcionalidade. Querem, então, a excepcionalidade porque querem, afinal, fazê-la permanente.

Diante da complexidade desses temas, o IBCCRIM inaugura 2010 perfilando-se com muitas entidades e instituições de defesa do Estado Democrático de Direito e dos direitos humanos, em prol do objetivo de trazer essas advertências importantes à sociedade brasileira. O principal objetivo, portanto, é debater uma investigação policial comprometida com a legalidade, coisa que nosso Instituto e seus parceiros, aliás, fazem desde sempre. Estamos diante de questões que estão sendo pouco refletidas pela sociedade que, sem o perceber, coloca-se à beira de decisões sérias e irreversíveis nesses temas. Não se trata senão de defender que a investigação policial, função pública por excelência, mantenha-se como atividade exclusivamente civil. Não se trata senão de defender que seu ambiente seja aquele da mais estrita legalidade. Para tanto, há de ser necessariamente conduzida por estruturas voltadas à cultura exclusiva do direito. Segurança pública, afinal, é tema de cidadania. Não de batalhas, guerras, gritos e exceções.

http://www.adpesp.com.br/home.php

Um comentário:

  1. Nitidamente o autor do texto tem um juizo de valor, interesses pessoais aqui intrínsecos. Círculo completo significa que Policiais Militares fariam o serviço completo, ou seja, deteria, prenderia em flagrante, investigaria, enfim, faria o que a sociedade precisa. Ocorre que isso traria uma perda de poder aos Delegados de Polícia e ninguém gosta de perder poderes. Lógico que não seria qualquer pessoa que oderia atuar nessa função, a não ser os que detivessem o conhecimento técnico-jurídico. Quando se refrerem a PMs, na regra a forma é preconceituosa ou desdenhosa, coisa de quem está com medo. A supremacia do interesse público autoriza a discussão pelo Congresso Nacional que ditaria as regras ao exercício de Policial num ciclo completo, óbvio. Quando rechaça argumento que deu certo num País e DARÁ errado no Brasil, atreve-se e acumula a função de vidente. Ser Policial Civil ou Militar não é sinônimo de saber mais ou menor. Torço para que o assunto seja amplamente discutido e que a sociedade tenha a resposta aos seus clamores. O que não dá é ficar como está, com as Polícias desencontradas e que não atingem aos seu propósito institucional. Abraços fraterno aos Policiais com ou sem farda, com respeito e sem discriminação. Arnaldo Lima, Sgt PM

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